Mais de trinta anos atrás, eu escrevi um artigo sobre a importância da língua latina cultivada na Idade Média (recentemente traduzido aqui). Ainda mantenho a posição que lá apresentei, a qual considerava a importância de qualquer língua clássica – ou seja, aquela que não é mais utilizada no discurso popular – na preservação de um depósito de formulações normativas das verdades filosófica e teológica. Refiro-me, aqui, não a formulações finais, mas, sim, normativas, que amparam a verdade tal como os meios-fios de uma estrada auxiliam os viajantes ao longo do caminho – mantendo-os certamente na estrada, porém, sem revelar antecipadamente curvas e reviravoltas futuras. Se fosse reescrever o ensaio hoje em dia, eu iria prevenir, mais explicitamente, um possível desentendimento da minha intenção. Eu não queria sugerir que o latim fosse a “língua sacra” do Cristianismo, ou do Catolicismo. Pois ele não o é.
Há, de fato, religiões com línguas sacras, como o hinduísmo e seu sânscrito, zoroastrianismo e seu avestá, o judaísmo com seu hebraico e o islã com seu árabe. Essas línguas estão indissoluvelmente casadas às tradições religiosas que expressam. No entanto, não existem núpcias correspondentes entre a fé cristã e qualquer língua absolutamente. Mesmo as editiones typicae latinas, publicadas pelo Vaticano para declarações oficiais, textos litúrgicos e também para a edição popular (“vulgar”) da Bíblia, nada mais são que documentos aprovados de referência. Traduções subsequentes devem tê-los como parâmetro quando há necessidade de negociar interpretações conflitantes, a fim de prevenir confusões evitáveis. Porém, por meio disso, não se eliminam confusões inevitáveis, principalmente no caso das Escrituras. Ambiguidades significativas permanecem, qualquer que seja a língua utilizada. Ainda assim, apesar do desafio, a tradução é parte essencial da mensagem cristã.
Dizer que a Bíblia é o texto mais traduzido no mundo é uma subestimação. Ela paira sozinha e astronomicamente acima dos demais livros traduzidos, com mais de 3300 versões. Os vice-campeões mais próximos dificilmente alcançam o número de 500. E mesmo no seu “texto original”, o Livro dos Livros divide seu mapa linguístico – pelo menos para os cristãos – em duas línguas extraordinariamente diferentes: o hebraico do Antigo Testamento, que é inalienavelmente semítico, e o grego do Novo Testamento, que faz parte de uma família de idiomas inteiramente diferente: a indo-européia. Mais ainda: o conteúdo do livro parecia destinado, desde o princípio, a seguir uma série promíscua de migrações linguísticas.
Já alguns séculos antes de Cristo, a Bíblia judaica foi traduzida para o grego helenístico (a famosa Septuaginta, a única versão do Antigo Testamento citada no Novo), e vários judeus até defenderam que a própria tradução fosse inspirada. Séculos após Cristo, o grande São Jerônimo iria traduzir o Antigo e o Novo Testamentos no emergente latim popular, aquele idioma que iria informar, intelectual e poeticamente, o mundo medieval (e por fim gerar as nossas línguas românicas). Os católicos caíram algumas vezes no mesmo erro daqueles judeus, considerando a Vulgata quase como uma tradução inspirada. É uma excelente e importante tradução, mas é o conteúdo que é inspirado, e não a língua.
Uma vez que o aumento na literacia e a invenção da prensa móvel progrediram, não demorou muito para que a Bíblia de Lutero e a Bíblia King James deixassem sua marca inequívoca em duas línguas destinadas a articularem o pensamento moderno (alemão e inglês). Traduções para outras línguas européias, seguidas de múltiplos idiomas mundiais, logo seguiram o exemplo, e a indústria de tradução bíblica se manteve inabalável desde então.
O afã da Igreja Católica de afirmar sua aderência a uma doutrina imutável frente aos múltiplos experimentos luteranos, calvinistas, anglicanos e anabatistas do Século XVI – seguidos pela explosão de denominações e novas interpretações da verdade cristã nos séculos seguintes – criou, compreensivelmente, uma tendência a manter o uso do latim na liturgia. Todavia, isso continuou não apenas até o Século XIX, onde o latim ainda era uma língua aprendida e entendida pela classe educada (mesmo Marx podia ler latim e grego!), mas além disso, ainda mais para dentro do conturbado Século XX. Nessa altura, no entanto, a língua tinha recuado para um canto obscuro da mente moderna, acessível apenas a classicistas e teólogos católicos. O resto do público estava fora do alcance da língua. O hábito de só murmurar partes da Missa apenas salientava esse afastamento gradual do trabalho duro, e da tarefa indelegável, da tradução.
Inevitavelmente, a Igreja na tradição latina finalmente permitiu que seus textos litúrgicos fossem traduzidos para as línguas do mundo, não apenas nos missais pessoais do laicato, mas igualmente nos livros usados no altar (ainda monitorados por Roma, onde aquelas edições “típicas” continuam a manter um lugar de honra e uma referência obrigatória). Nisso, ela seguiu o exemplo dos protestantes em tornar, não apenas a Bíblia, mas também a liturgia acessível ao ouvido secular. Claro, algumas comunidades religiosas podem optar por manter o latim na íntegra, mas elas vão comumente exigir que seus membros recebam algum treino no idioma. Em geral, porém, a abertura da liturgia às múltiplas línguas do mundo tem sido uma bênção imensa, e há muito aguardada.
Nada tenho contra o latim (refiro-me de novo ao meu artigo anterior!). Um uso seletivo e ponderado dele em partes da liturgia – especialmente quando o tesouro do Canto Gregoriano está incluído –, deveria, a meu ver, continuar. O próprio Concílio Vaticano II previu isso. Mas um dos problemas de usar somente o latim para as partes principais da Missa nas paróquias de hoje, além do problema da inteligibilidade, são as esquisitices das pronúncias de um idioma que não é mais a língua nativa de ninguém. A única coisa pior que ouvir um francês puxando a pronúncia do “r” ao dizer miserere nobis, é ouvir o latim pronunciado com um sotaque de cowboy americano. Dominus vobiscum (alguém quer jogar dominós?).
Eu mesmo celebrei a Eucaristia em latim por anos (segundo o formulário de São Paulo VI). Minha pronúncia, a propósito, eu achei aceitável. Mas também celebrei em francês, inglês, italiano, espanhol, alemão e – pelos últimos trinta anos – em português. Que alegria é ouvir a mensagem do Evangelho e a beleza da Eucaristia alcançarem a morfologia, a sintaxe e a métrica característica de mais e mais línguas do mundo. E nós ainda temos trabalho a fazer (há mais de 6000 línguas no mundo!).
É um longo caminho de Babel ao Pentecostes, mas é aquele que a fé cristã, como nenhuma outra religião da Terra, está destinada a percorrer.