As assim chamadas obras “lógicas” de Aristóteles foram reunidas e ordenadas sob o título “Organon” (instrumento, órgão) desde que seu primeiro grande editor as agrupou no Século I a.C. Parece que ele, Andrônico de Rodes, usou esse rótulo sugerindo que Aristóteles considerou o estudo da lógica como sendo o instrumento preparatório inevitável, substancialmente propedêutico, que se deve primeiramente aprender antes de embarcar no mundo real estudado pela física, psicologia, metafísica, ética e assim por diante. Embora essa afirmação tenha sido considerada como contendo certa verdade, algumas questões têm sempre perturbado sua articulação.
A primeira delas é que o Filósofo se dedica tanto tempo a esse instrumento supostamente secundário. Os “Analíticos”, sua obra que lida propriamente com a inferência lógica, são tão extensos que foram divididos em dois grandes livros, bem difíceis por sinal. Se forem agrupados os outros textos do Organon (“Categorias”, “Da Interpretação”, “Tópicos” e “Refutações Sofísticas” – para não mencionar “Retórica” e “Poética”, que os aristotélicos árabes nele incluíam, não sem razão) junto com os Analíticos, haverá material de estudo por um bom par de anos, no mínimo. Seria isso tudo apenas um instrumento?
A segunda questão é ainda mais intrigante. Se o Estagirita considerou essas obras lógicas como sendo tão intrinsecamente instrumentais para o seu amplo projeto filosófico, por que, quando analisamos seus tratados físicos, psicológicos, metafísicos e éticos/políticos – e mesmo sua Poética incompleta – não encontramos uma sequer referência a elas? Se estamos atarefados construindo o edifício da filosofia com nosso martelo, serra, chave de fenda, alicates e com todos os outros instrumentos de uma abundante caixa de ferramentas, não deveríamos vislumbrar, ao menos por um momento, o papel ativo e indispensável deles na produção da estrutura? (“Dê-me o martelo”. “Agora preciso dos alicates” etc.) Mas assim não ocorre, e é de se indagar por quê.
Alguns sugeriram, embora imperfeitamente, na minha opinião, que já que temos apenas um quarto ou mesmo apenas um quinto de tudo o que Aristóteles escreveu, talvez ele tenha feito essas referências cruzadas nas suas obras que se perderam. Porém, as melhores conjecturas sobre essas obras faltantes é que elas se constituíam de muitos diálogos iniciais e de pilhas de notas sobre suas pesquisas zoológicas incessantes. Seus tratados substanciais, mesmo com suas imperfeições, parecem que foram preservados porque constituem a parte principal de seu pensamento maduro.
Encontro uma resposta melhor a esse non sequitur no próprio livro que discute a natureza do intelecto (nous), ou seja, a faculdade mesma que primeiramente utiliza procedimentos lógicos. Creio que esse texto explica a inspiração do título “Organon”, por um lado, mas também nos fornece um insight sobre o porquê de esses procedimentos receberem uma tão prolongada atenção no início, e depois serem quase esquecidos nos tratados restantes sobre o “mundo real”.
Aristóteles famosamente define o homem como um animal racional, e fazemos bem ao lembrar da amplitude do adjetivo grego logikon, denotando que somos animais que produzem logoi, ou seja, discursos. Não latimos ou ganimos como alguns confrades animais (pelo menos em nossos melhores momentos), mas falamos, e quando falamos proferimos vários tipos de discursos. Do ventre do primeiríssimo conceito que geramos – o conceito de ser (o mais universal e fecundo e, por isso, o menos específico de todos os conceitos) – produzimos logoi. Assim, por sua vez, prosseguimos especificando seres (no plural), e assim o fazemos significando tanto ideias e sentimentos em nossas almas quanto pessoas e ideias no mundo fora de nós.
Tais discursos são em sua maioria aproximações, considerando-se seu poder inferencial, formulados naquilo que Aristóteles chamará de entimemas, ou seja, argumentos com componentes implícitos. Em seguida, entretanto, podem vir os discursos dialético, poético e, por vezes, científico também. Mas, já que evidentemente desempenhamos todos esses atos, obviamente devemos ter o poder para desempenhá-los; esse poder, ou faculdade, é muito simplesmente o que chamamos de nous (podendo ser traduzido como intelecto, mente, razão ou inteligência).
Em De Anima (“Sobre a Alma”), onde Aristóteles estuda a psicologia – a ciência das “almas” em todos os seus poderes, atos e formas – ele chega a uma declaração curiosa no terceiro livro quando discutindo o nous; ele o compara com a mão, pois a mão é aquilo com o que manejamos quase tudo, e o nous é aquilo com o que pensamos sobre tudo. Assim como a boca e a mente, a mão é estruturada com uma abertura constitutiva, mas essa abertura apenas existe para que possa fechar-se. Conforme nossa boca abre-se para falar, mas (assim se espera!) logo fecha-se para ouvir, ou abre-se para comer, e então (espera-se, mais uma vez) fecha-se para mastigar e engolir; assim também nossa mente aparenta ter o mesmo padrão: ela abre-se, mas apenas, pode-se dizer, a fim de que possa “abocanhar” o conhecimento.
Aristóteles esteve intrigado com essa analogia entre a mente e a mão; essa última estando naturalmente aberta, e desse modo, permanecendo apta a apreender virtualmente qualquer ferramenta que se lhe apresenta. É relevante neste ponto o fato que em nossas línguas europeias as palavras que tipicamente usamos para sugerir a atividade intelectual e de entendimento têm um caráter “manual”, ou seja, nós “apreendemos” algo, nós “compreendemos” algo (do latim prehendere, que significa pegar). Em alemão as palavras análogas são ergreifen, erfassen (ambas originalmente significando pegar algo com as mãos). Em certo sentido, a mão é o principal instrumento do corpo, mas graças à sua versatilidade extraordinária e às suas abertura e habilidade radicais de assumir um grande número de configurações (apanhar uma maçã, girar uma chave de fendas, brandir um martelo, empurrar e puxar uma serra, gesticular, e assim por diante), seria ainda melhor chamar a mão, sugere Aristóteles, de “o instrumento dos instrumentos”, o “a ferramenta das ferramentas”.
Sua ideia é essa: o intelecto parece fazer de um modo imaterial o que a mão faz de um modo material. A mente também “capta” algo; também está a serviço, por assim dizer, das “ferramentas” que maneja (conceitos, juízos, argumentos, hipóteses etc.). No entanto, a versatilidade e a adaptabilidade da mão material estão ainda limitadas pela sua própria materialidade; embora a mão seja um indicador, um “signo” de nossa natureza racional (junto com o rosto, como Aristóteles afirma), ela ainda não pode fazer tudo.
Mesmo assim, ela vai relativamente longe, enquanto pode gesticular eloquentemente (um talento extremamente desenvolvido pelos italianos); mas mesmo em seu primeiro gesto “lógico” – aquele da criança espontaneamente apontando algo fora de si mesma – a mão também “aponta interiormente” o poder da mente por trás desse gesto, que é indubitavelmente “indicado” por aquele dedo indicador naturalmente estendido. (Veja o meu post sobre o assunto: Apontando e vendo juntos).
A mente, o nous, enquanto poder imaterial, é capaz – diferentemente da mão material – de ser inteiramente versátil e adaptável em relação às formalidades que apreende. Em suma, ele pode fazer tudo. A mão ainda tem uma forma fixa (palma, polegar e quatro dedos), o nous não apenas não tem de modo algum uma configuração material, mas sua “forma” imaterial – sua especificação natural, sua função por excelência – é precisamente não ter forma.
Ele pode acolher, pode se tornar todas as formas, pois por natureza não possui nenhuma. Semelhantemente à argila que é sem forma, de modo a ser formatada de qualquer modo que se queira, o intelecto é sem forma de modo que possa receber qualquer forma cognoscível com a qual se confronte; assim, ele está aberto por natureza. Isso leva-nos ao título de meu ensaio, pois como Aristóteles chama a mão, que está aberta a todos os instrumentos, de “a ferramenta das ferramentas”, a “forma” que está aberta a todas as formas deveria se chamar “a forma das formas”.
É essa natureza radicalmente aberta do nous que leva Aristóteles a afirmar, em uma de suas declarações mais famosas e surpreendentes, que a alma intelectual é, em certa medida, todas as coisas existentes (De Anima, 431b21). Toda e qualquer coisa que existe agora, ou que já foi, ou que poderia ser é em princípio cognoscível por um intelecto cujo objeto próprio é, muito simplesmente, o ser (e isso não exclui nada que, de qualquer modo possível, seja considerado “algo que é”). Alguns filósofos medievais chamaram o “espírito” (a “parte” intelectual ou centro da alma) de anima animae, a “alma da alma”, mas essa mesma alma do animal racional não apenas anima a matéria do corpo, mas é ela própria, por sua vez, animada por seu centro espiritual.
Essa “animação” significa que ela está aberta, e quase literalmente viva para todos os seres, capax universi (“capaz de tudo”, nas palavras, um tanto hiperbólicas, de Tomás de Aquino). Por meio disso, a alma “torna-se todas as coisas”, no sentido de que sua forma imaterial permite que ela seja in-formada por toda e qualquer realidade dentro de sua experiência. Ela pode se tornar, intencionalmente (ou seja, em um modo imaterial de ser que significa; que, desse modo, “tende para” uma realidade além de si), aquilo que as coisas conhecidas são na realidade (ou seja, no mundo extra-mental das coisas).
Tudo isso explica por que os estudos lógicos são considerados instrumentais, não apenas no sentido de que é necessária a certa proficiência neles a fim de que se possa pensar coerentemente nas ciências do real, mas também porque eles estudam a própria “mão” intelectual possuída pela alma humana. A palavra grega que Aristóteles usa para dizer “ferramenta das ferramentas” é a mesma palavra que a tradição empregou para se referir à lógica: organon. A mão é o “organon dos organons”. O intelecto, por sua vez, é a “ideia das ideias, ou a forma das formas”. Ao aplicar, analogicamente, a noção de organon (instrumento, ferramenta) àquela da “forma” do intelecto (seu eidon), o próximo passo, de considerar os estudos lógicos como um instrumento, vem naturalmente.
O órgão intelectual existe apenas de modo a alcançar a realidade, seu alcance é tão complexo, tão rico de articulações (não dessemelhante, mas muito mais rico que os dedos da mão), e os discursos que produz tão multifacetados em modos nos quais o pensamento pode ser logikon (“lógico”), que Aristóteles mergulha profundamente e extensivamente nesse mundo, explorando seu funcionamento e seus princípios; ele faz isso “separando, dissecando seus componentes” (a raiz da palavra “análise”; daí o nome para os estudos lógicos: “analíticos”). É por isso que ele passa tanto tempo nesse estudo, pois é tão interessante em si mesmo, e tão revelador do modo como o nous funciona.
Mas há algo mais. A ausência de qualquer referência conspícua às obras lógicas em seus tratados científicos teoréticos ou práticos é, de fato, uma evidência da natureza verdadeiramente “instrumental” da lógica. Isso evidencia como esse instrumento muito especial – essa ferramenta que se eleva e paira tão astronomicamente quanto o faz o osso arremessado na cena icônica de 2001: Uma Odisseia no Espaço – vive no mundo imaterial do conhecimento. Os conceitos, juízos, silogismos e tudo o mais de nosso software cognitivo intencional – ao contrário da densidade, metálica e de madeira, dos instrumentos do carpinteiro – são realidades intencionais, feitas pela mente e existindo só nela. Os escolásticos chamaram-nas de “intenções”, na medida em que elas “intendem”, isto é, referem-se seja diretamente a realidades além delas (como o fazem as “primeiras intenções”, especialmente os conceitos) seja, no caso dos chamados “predicáveis” (gênero, diferença, espécie, acidente e propriedade), referindo-se mais aos modos nos quais os seres, uma vez conhecidos, existem na mente, e apenas na medida em que são conhecidos.
Mas, conforme pensamos coerentemente, e permitimos que as realidades que encontramos na sensação entrem em nossas faculdades cognitivas e as moderem, essas “intenções” terão uma tendência a funcionar invisivelmente. Elas são transparentes para as realidades às quais dão acesso, como as lentes de óculos, ou a vidraça da janela da sala de estar. Olhamos através delas e não para elas. É apenas quando as lentes trincam, ou quando uma pedra se choca contra a vidraça, ou simplesmente quando essas coisas ficam embaçadas que se presta alguma atenção ao vidro. De igual maneira, é apenas quando o pensamento se deturpa ou torna-se incerto de si mesmo que precisamos recorrer à caixa de ferramentas da lógica. Do mesmo modo, apenas chamamos de volta o carpinteiro que construiu a casa, para uma visita adicional, quando a casa exige reparos. Ao que parece, os tratados substanciais de Aristóteles raramente carecem de tais reparos.