Duas figuras aparentemente periféricas nas páginas da Escritura manifestam-se de um modo enigmático quando consideradas isoladas, mas começam a irradiar sentido quando vistas em conjunto. Refiro-me à figura de Melquisedeque, em Gênesis, e à figura do Mago, em Mateus, (geralmente considerada como três ou mais Magos). Em contraste com os dois protagonistas imponentes que se situam na origem das principais histórias do Antigo e do Novo Testamentos (Abraão e Cristo), essas duas figuras ostensivamente menores são secundárias, membros do elenco de apoio, podemos dizer. Porém, por alguns momentos, seus episódios na narrativa bíblica quase chegam a roubar a cena.
Ninguém é mais determinante em toda a história do Antigo Testamento que o patriarca dos patriarcas, Abraão. Três religiões mundiais são chamadas ‘abraâmicas’ por causa da importância fundadora que elas outorgam a esse homem e seus feitos. Gênesis 12-25 narra grandes acontecimentos na vida de Abraão, tal como sua jornada de Ur dos Caldeus até Canaã, suas batalhas com espantosos inimigos, a grande Promessa que recebeu, a gravidez miraculosa de sua mulher anciã, e o sacrifício misterioso a que foi ordenado a realizar, mas impedido de executar – tudo isso sobre o homem que os cristãos vieram a chamar de o ‘Pai de nossa Fé’.
Do ventre de Abraão surgirá o Povo Escolhido, e para os cristãos, finalmente, a Igreja. O fato de o considerarmos como o patriarca, como o ponto de partida da história da salvação, seria ameaçado se alguém fosse colocado acima dele. Mas é exatamente isso que parece acontecer em alguns versos de Gênesis (14, 18-20):
E Melquisedeque, Rei de Salém, trouxe pão e vinho; era sacerdote do Deus Altíssimo. E ele abençoou [Abraão] dizendo: ‘bendito seja Abraão por Deus Altíssimo, criador do Céu e da Terra; e bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou seus inimigos em suas mãos!’ E Abraão deu-lhe o dízimo de tudo.
Não há registro de outras menções a essa figura misteriosa do Antigo Testamento, ou quase não há. A exceção está em uma referência notável do Salmo 110, que é breve, mas evidencia ainda mais a importância desse rei ou sacerdote que quase ilogicamente se intromete na narrativa abraâmica:
Desde o início da alvorada, terás o orvalho da juventude. O Senhor jurou, e não se arrependerá. ‘Tu és sacerdote para sempre, por ordem de Melquisedeque’.
Teólogos cristãos têm se esforçado para entender essa ‘ordem’, essa linhagem sacerdotal anterior e, portanto, posterior à linhagem levítica que ainda aguarda nos lombos de Abraão. Pareceu mais lógico identificar Melquisedeque como uma prefiguração de Cristo. O problema com isso é que qualquer homem santo da Antiga Aliança pode ser visto assim. Além do mais, o mistério vai se aprofundando quando abrimos a Carta aos Hebreus, nos capítulos 5-7. Qualquer um que leva o Novo Testamento a sério terá de prestar a devida atenção ao que está escrito nesses capítulos. Lá achamos, por exemplo:
… Ele [Melquisedeque] carece de pai ou mãe ou genealogia, nem tem um começo de seus dias, nem fim de sua vida, mas semelhantemente ao Filho de Deus ele permanece sacerdote eternamente. Observe o quão grande ele é!… (Hb. 7, 3-4)
Algumas tradições hebraicas o identificaram com Sem, filho de Noé. Desde que Cristo nasceu na linhagem semítica, a identificação soa promissora. Mas infelizmente conhecemos muito bem a genealogia de Sem, e Melquisedeque supostamente carece de uma.
Muitos voltaram à sugestão de que ele fosse uma epifania pré-Encarnada do próprio Cristo. Mas se houvesse um Cristo “pré-Encarnado” agindo no mundo antigo, isso inevitavelmente estimularia um bocado de questões a respeito de religiões não-cristãs, mais notavelmente as religiões primordiais e mais desenvolvidas do Oriente. Essas questões são dignas de desenvolvimento.
Em outros cantos, as especulações esotéricas identificaram Melquisedeque com todos, de Hermes Trismegisto a Enoque, ou mesmo a Zoroastro. Todavia, a documentação é muito escassa para que seja confirmada ou desmentida qualquer uma dessas identificações. Afinal, a variedade e a persistência dessas tentativas de identificação estabelece um fato fora de qualquer dúvida: quem quer que Melquisedque tenha sido, ele foi sobremaneira importante.
Nesse ponto, um fato óbvio, mas frequentemente desprezado, deve ser enaltecido: os dramas bíblicos, do Antigo e do Novo Testamentos, não se desdobram na Europa. Do início ao fim, eles ocorrem no Oriente, ou naquela parte que está bem a leste da região que no futuro será conhecida como Europa. Mesmo o Éden estava ‘no Oriente’ (Gên. 2,8), e depois da Queda, os querubim foram colocados “a leste do Jardim do Éden… para proteger o caminho até a Árvore da Vida” (3,24).
É claro que São Paulo vai se aventurar pelo Egeu e acabar em Roma, mas naquele momento o drama do Evangelho já tenha atingido o seu clímax. Paulo foi apenas um emissário da mensagem resultante. De outro modo, o alcance mais ‘ocidental’ desse caminho terminou só no Egito, tanto com os próprios hebreus antes da Ocupação, quanto com a Sagrada Família antes de Nazaré. Mesmo assim, mal podemos entender o Egito antigo como parte do ‘Ocidente’, seja qual for sua caracterização.
Ao pesquisar os grandes ímpetos de filosofia e religião que surgiram da Grécia e da Palestina, comumente deixamos de considerar o grau de comércio e de contato entre o Mediterrâneo oriental com os mundos distantes de Pérsia, Índia, e mesmo China. A singularidade, ou o ‘excepcionalismo’, da ciência e da arte gregas, por um lado, e da religião e da moral judaico-cristãs, por outro, ainda pode manter seu perfil dentro do contexto de uma robusta osmose cultural entre Oriente e Ocidente. Mas o significado do Oriente recentemente ganhou novo destaque devido ao inédito contato moderno com a vasta herança religiosa e filosófica da Índia, China, Tibete, Japão e outras regiões do mundo a leste do Rio Indo.
O Gênesis nos diz que Melquisedeque foi o ‘Rei de Salém’, ou seja, ‘da Paz’, o que pode significar um lugar particular (identificado tradicionalmente com a Jerusalém pré-davídico) ou, possivelmente, uma função sobrenatural mais vinculado à noção mesma de paz do que à geografia urbana. Talvez ambos os sentidos estejam certos. Se Melquisedeque veio ou não do leste de Canaã, ou foi simplesmente um monarca anterior do que veio a ser a Cidade de Davi, os superlativos usados para descrevê-lo sugerem que ele veio do manancial de todas as religiões, “carecendo de pai, mãe ou genealogia”. Nesse sentido, ele talvez represente um Oriente simbólico, ligado ao ‘Leste’ do Éden.
Quando nos defrontamos, entretanto, com os Magos do Evangelho de São Mateus, claramente ficamos diante de representantes do Oriente geográfico. Países tão diversos como Iêmen, Arábia Saudita, Irã e mesmo Índia reivindicaram esses senhores como seus. Como acontece sempre com eventos misteriosos de impacto mundial, tradições e lendas cresceram rapidamente, com o número dos Magos, por exemplo, variando de três a doze, ou até mais. Alguns dirão que o lugar atual onde jazem suas relíquias está perto do Teerão, já outros dirão que em Colônia. Eles ganharam nomes (Caspar, Melquior e Baltasar) e tornaram-se protagonistas integrais na cena da manjedoura a cada Natal. Há a tendência de identificá-los, segundo o consenso, tanto com zoroastrianos da Pérsia quanto com astrólogos caldeus do lar original de Abraão, ou até (numa sugestão mais recente e bastante convincente) nabateus. Nessa época antiga, a astronomia e a astrologia estavam tão interligadas que era impensável qualquer separação entre o movimento e o significado das estrelas; o comportamento de algumas estrelas indicava que um rei nasceria no Oeste.
Esses orientais exóticos receberam o convite de ver e venerar o Messias antes mesmo que um único fariseu, saduceu, escriba ou sacerdote dos judeus pudesse se aproximar dele. E a visita desses homens do Oriente involuntariamente faria com que a Sagrada Família movesse em direção ao oeste, para o Egito (devido ao Massacre dos Inocentes de Herodes). Décadas mais tarde, São Paulo também iria ao oeste, mas o Apóstolo São Tomé iria ao leste, até a Índia. Com ele, seguido por ondas subsequentes de missionários sírios, o Cristianismo levaria sua graça e cresceria na Ásia muito antes de se tornar uma religião ‘europeia’.
Mais tarde, outros missionários europeus – especialmente portugueses – mudariam essa situação, e as contribuições cruciais de São Paulo e, posteriormente, da filosofia grega e do direito romano seriam introduzidas instrumentalmente nas formulações da fé cristã e na organização da igreja cristã. Mas no Oriente isso apenas se daria depois que o Cristianismo asiático de mais de um milênio tivesse contado sua história à eternidade. O Cristianismo do Oriente, agora frequentemente esquecido, junto com seu legado, é no mínimo tão importante quanto aquele que nós ocidentais identificamos como o nosso próprio. Tanto Melquisedeque quanto os Magos podem ter muito a nos ensinar, caso tenhamos a boa sorte de encontrá-los após a morte[1].
[1] *The Lost History of Christianity: The Thousand-Year Golden Age, de Philip Jenkins (HarperOne, 2008) – um bom guia para aquilo de que nos esquecemos.