* continuação de O sábio e o gnóstico (1ª parte) *
“ Guarde o depósito, evita o palavreado vão e ímpio, e as contradições de uma falsa ciência (gnoseos), pois alguns, professando-a, se desviaram da fé.” (1 Tim 6, 20)
“Ainda que tivesse o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência (gnosin) … se não tivesse a caridade, nada seria.” (1 Cor. 13, 2)
“Assim tereis condições para compreender com todos os santos qual é a largura e o comprimento e a altura e a profundidade, e conhecer (gnoni) o amor de Cristo que excede todo conhecimento (gnoseos), para que sejais plenificados com toda a plenitude de Deus.” (Ef. 3, 18-29)
Cada um dos aspectos (1) ponerológico/cosmogônico, (2) antropológico e (3) soteriológico de uma mentalidade gnóstica traz consigo um grande pressuposto, e depois, gera um par de quase inevitáveis consequências.
O pressuposto é que o Deus gnóstico – entendido não como Demiurgo, mas como Deus supremo – não tem, nem pode ter relações e interações com nosso mundo físico, e especialmente no que toca a nossos corpos. Neste detalhe, o gnóstico é quase deísta, embora com uma ressalva: o deísmo vê o universo como bom e ordenado, negando a Deus apenas qualquer intervenção nele (e nem por ser proibida, mas antes por ser desnecessária); na visão gnóstica, em contrapartida, o mundo nem se qualifica como um cosmos deísta, ou seja, um mecanismo de alta precisão. Tudo ao contrário, o mundo se apresenta como um lapso, um erro; a corrupção é inerente à sua natureza. Assim, não precisa de um pastor, de um gerente ou de um Isaac Newton, mas só – e urgentemente – um plano de escape.
As duas consequências do gnosticismo são como que encarnações das contradições ontológicas, provindo do primeiro aspecto (a respeito da cosmogênese e do surgimento do mal). O mundo, repito, pode ser entendido ou como o cosmos material ou, em tempos mais recentes, como o mundo secular do homem. Mas nos dois casos, a realidade palpável existe sem sentido e harmonia inata; ao invés, é um presídio de que precisamos fugir, mesmo se fosse apenas a fuga ideológica da ameaça de uma “nova ordem mundial,” a qual insistimos em demonizar. Seja como for a versão da “demonologia secular” adotada, a criação não pode ser vista como um ambiente em que nosso papel seria de ser “fecundos, multiplicando-nos, enchendo a terra e submetendo-a; dominando sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais…” (Gn. 1, 28).
Nada disso. O grande equilíbrio proclamado e almejado nas éticas principais da Antiguidade, e também pelos autores espirituais do cristianismo, e que achou sua formulação clássica na Regra de São Bento de Núrsia: ne quid nimis (“nada em excesso,” cap. 64), perde todo sentido. Para o gnóstico, um tal comportamento balanceado é declarado como inexequível em um mundo intrínseca e irreparavelmente desajustado. A matéria, ou simplesmente a ordem secular mesma (em especial, a “modernidade”), não pode ser santificada, enobrecida, até sacramentalizada, mas apenas – e só para aqueles que “sabem” as rotas de liberação – abandonada.
Eis agora as duas consequências referidas. Amplamente documentados entre os gnósticos da Antiguidade são excessos contrários na vida prática, e especialmente no comportamento sexual. Nossa racionalidade mesma fica sequestrada e abusada na coexistência desses excessos, a saber: se o mundo carece de valor e sentido, uma resposta lógica a esse veredicto seria um ascetismo duro e até desumano; todavia, a mesmíssima lógica pode justificar – por mais contraditório que pareça – também uma devassidão sem limites.
A idêntica premissa perversa pode gerar uma prole antagônica, duas conclusões diametralmente opostas: pois, se o mundo físico não tem valor, logo deveríamos fugir dele; mas a mesma premissa pode gerar o oposto, porque, se o mundo físico realmente não tem valor, logo, podemos abusá-lo com impunidade. Uma vez que estamos exilados por um tempinho aqui embaixo, entrementes parece que deveríamos castigar este corpo corrupto; ou, também parece que temos licença de nos divertir um pouco. A mente gnóstica pode justificar, com igual coerência, o mais implacável suplício ao lado da mais desenfreada suruba – uma cartuxa aqui e um prostíbulo ali.
Quanto aos nossos gnósticos modernos – après la lettre, por assim dizer – tais contradições se manifestam mais no mundo do pensamento e linguagem. De um lado, vários pensadores pós-modernos pregam uma renúncia total a qualquer reivindicação de verdade formulável (um quietismo filosófico, presente hoje em interpretações de filosofia como apenas uma “terapia” para curar-nos das ilusões); mas na direção oposta, outros vão insistir em um dogmatismo absoluto sem nuance, gradação ou diferenciação (um fundamentalismo filosófico, que presenciamos especialmente em promotores de versões contemporâneas do cientificismo).
Uma pessoa de hoje contaminada pelo gnosticismo vai se orgulhar, desmedidamente, sobre seu “conhecimento” e a bajulação dos seus asseclas que celebram sua suposta sabedoria. Mas também vai mostrar sinais desses extremos mencionados. Por exemplo, vai comportar-se com impunidade quando, de um lado, insiste no caráter esotérico do seu conhecimento, que precisa ser quase “absorto” dele pela presença contínua dos asseclas aos pés da sua pessoa; mas do outro, vai inundar o mundo com seus escritos e falas, seduzindo os seguidores a passar o resto das suas vidas se mergulhando nos seus ensinamentos explícitos (muitas vezes gravados para sobreviver a morte do mestre). Vimos isso, famosamente, no caso do “Osho.”
Onde, então, podemos achar a sabedoria autêntica? A resposta é simples, mas patente apenas para o humilde. Está no coração do famoso ponto de partida da verdadeira filosofia, assinalado tanto por Platão como por Aristóteles. (Mais sobre isso aqui: O maravilhoso) O thauma (admiração, espanto) surge na percepção sensorial (a ser cultivada nas artes e nas humanidades), dirige-se racionalmente a assuntos tanto universais quanto específicos (na filosofia e nas ciências), e descobre-se endereçado, até desafiado pela última transcendência (na religião, e em seguida na teologia). Só esta gradual aproximação à sabedoria – nascendo no domínio dos sentidos e da imaginação, formulando-se primeiro no domínio da razão, e consumando-se no domínio da religião – nas suas três dimensões filosófica, teológica e mística, está em condições de nos insular contra os extremos do gnosticismo.
Qual a “matéria” dessa insulação? A resposta, de novo, é relativamente simples: a admiração consiste sempre de uma combinação estimulante de conhecimento seguro (principial e fundante), mas inescapavelmente ambientada contra um horizonte de desconhecimento circunstante. Os objetos desconhecidos, porém, possuem uma existência inegável, mas uma essência simultaneamente significante e misteriosa. O thauma podemos até definir como a constatação segura da existência de algo que obviamente é significante, mas sem sabermos exatamente por quê. O apoio do conhecimento parcial (primeiros princípios, determinações tranquilas e evidentes da existência de nós e do mundo) nos preserve do ceticismo e quietismo, mas a consciência aguda da imensidão do desconhecido restante nos mantém alertas, humildes e abertos.
Os três domínios mencionados (artes/humanidades, filosofia/ciência, religião/teologia) são, cada um, o reflexo de três transcendências (T) originárias, e que todo ser humano enfrenta: 1) a T do mundo físico em relação ao nosso corpo, a qual experimentamos geográfica, histórica e linguisticamente nas humanidades, e vicariamente nas várias artes visuais e performativas; 2) a T da nossa mente em relação a esse universo físico ao nosso redor, a qual exploramos pelo inquérito filosófico, e depois exploramos em forma especializada nas ciências; e 3) a T do Ser na sua transcendência ontológica e absoluta, superando tanto o cosmos físico quanto o nosso conhecimento possível (seja ele o Absoluto de alguns filósofos, o Deus revelado na religião, ou até um Cosmos entendido como uma transcendência imanente mas misteriosa).
É claro que pessoas não religiosas ou ateias podem se recuar perante essa terceira transcendência. Não obstante, uma das características salientes do gnosticismo, no meu entender, é precisamente a “importação” (normalmente às escondidas) de elementos religiosos e até místicos tanto nas artes como na filosofia e nas ciências. Quem faz da sua música ou da sua cinematografia já uma filosofia consumada, ou pior uma quase-religião, já está dançando pelo menos na fronteira de uma inspiração gnóstica. Igualmente quem eleva seus esforços filosóficos ao nível de uma religião, também sofre esta influência.
Incluí como possíveis articulações “religiosas” a noção de um Absoluto, ou até do próprio Cosmos, entendido como um quase-Deus (à la Carl Sagan, por exemplo). Tais abordagens não explicitamente religiosas mesmo assim atendem à necessidade de uma terceira transcendência que estende além do alcance da ciência, filosofia ou arte. Quando alguém faz apelo ao Grande Cosmos, ou mesmo à mera possibilidade de um Deus (o próprio Sagan aceitou a possibilidade), já está se afastando daquele erro gnóstico que consiste em identificar conhecimento filosófico, ou científico – ou mesmo estético – com a sabedoria suprema. Eles recusam a fechar seu mundo dentro das cercas do já conhecido. Para eles, não está tudo perdido.
Essas três T (física, intelectual e ontológica) convidam os três domínios a embarcar nas suas viagens poética, racional e religiosa. Porém, a sabedoria propriamente falando inclui, na maioria das tradições, uma formulação discursiva e racional, e assim começa a se articular como tal só no ambiente da segunda transcendência. A razão, que já estava envolvida, inevitavelmente, nas humanidades e nas artes – embora só de forma espontânea e exclusivamente no serviço dessas atividades – começa agora a virar autoconsciente e de espalhar suas asas.
Não obstante sua excelência e importância como faculdade, a razão precisava desse banho na realidade concreta. Uma filosofia saudável apenas pode surgir quando provocada e irrigada por uma rica experiência sensorial e poética. O primeiro perfil de uma boa questão filosófica aparece só quando brota do solo de uma imaginação ativa e amplamente tonificada no mundo da experiência particular.
Nosso tesouro mnemônico de histórias, imagens, símbolos, personagens, canções, arquétipos e temas provindo da literatura, e das artes visuais e performativas, é a única sementeira fértil de onde podem nascer inquéritos filosóficos sensatos e realistas. Apenas depois seriam seguidos, na melhor hipótese, pelas pesquisas da ciência moderna.
A sabedoria filosófica fica como que escondida e implícita na concretude das artes e nos horizontes terrestres das humanidades, apenas tímido de formulação racional. Todavia, já engendra vislumbres inesquecíveis das indagações filosóficas ainda por vir. Marginalizamos essas inspirações a nossa conta e risco. E, diga-se de passagem, a presença e influência da dimensão poética não param de ser relevantes na presença da filosofia e teologia – e até das ciências – e ainda menos da experiência mística. São como os alicerces de uma casa, que continuam sustentando tudo, mesmo quando ficamos ocupados com outras coisas nos andares em cima.
A passagem do campo imaginativo, sensorial e afetivo do primeiro domínio para o conhecimento disciplinado do segundo pode ser um pouco traumática. Portanto, para facilitar a viagem um outro conjunto de artes será preciso, distintas das belas artes. A rica experiência do primeiro domínio gera um desejo pela cognição racional, mas ao mesmo tempo reconhece a necessidade de adestramento nos movimentos e nos trajetos do discurso disciplinado. Reconhece a necessidade de artes que, em vez de mexer com nossos sentidos externos e internos, e também com nossas emoções, mexem diretamente com nosso pensamento em si.
Obviamente, já empregamos pensamento quando nadamos no oceano das Musas. Um pouco de gramática e aritmética fará parte de aprendizagem de cada criança enquanto desfrute de uma formação humanística infantil; já fará suas primeiras aventuras de música, dança e drama. No entanto, mover-se habilmente dentro do palácio de filosofia e nas repartições das ciências exige mais do que danças, poemas e canções. Pessoas cantam, mas também possuem convicções. Tanto o adolescente quanto o jovem adulto vão achar-se circundado por um turbilhão de opiniões reivindicando sua atenção. Facilmente, talvez inevitavelmente, descobrirá que algumas delas ameaçam ser mais cadeias do que caminhos, cadeias de cativeiro prendendo-nos em visões parciais e preconceituosas.
Precisamos de um intelecto livre para ver as coisas como são, livre de meras opiniões e achismos. Os andamentos da nossa razão têm que ser disciplinados para que ela possa se adequar às exigências do vasto mundo do real. Teremos que tomar certa distância dos sentimentos e dos sentidos para elevar-nos a considerações mais abrangentes. Precisamos de instrumentos para por ordem no tesouro rico, mas às vezes turbulento da nossa memória. Precisamos de artes liberais. (Sobre elas, umas reflexões aqui: Das artes liberais à filosofia.)
A complicada relação entre filosofia e as ciências modernas (tanto naturais quanto sociais/humanas) abordo aqui: Cenoscopia e Idioscopia. No presente ensaio, cabe apenas salientar que nenhuma ciência moderna possui, intrinsecamente, uma abertura programática para a sabedoria, e isso por força da sua definição metodológica de um campo de pesquisa rigorosamente limitado. A estrita auto-delimitação é imprescendível para uma ciência rigorosa. Em contraste, Aristóteles identificou a metafísica – o cume mesmo da empreitada filosófica – como essencialmente sapiencial, sendo a parte da filosofia que abarca a questão do ente enquanto ente: o “assunto” mais abrangente de todos.
De certa forma, uma metafísica implícita informa todo ato filosófico (teórico e prático), na medida em que o conhecimento começa sempre com o ente (o ens primum cognitum de Tomás de Aquino), e avança apenas graças à sua luz. O ciclo de disciplinas filosóficas, idealmente, também culmina no estudo da “filosofia primeira” (como Aristóteles nomeia a metafísica). Esta prioridade jaz no seu objeto, que é sempre pressuposto, e assim anteriormente presente, embora cheguemos a focalizar nossa atenção explícita nessas realidades mais primárias, mais causais, só no fim do estudo. Porém, é lá, quase paradoxalmente, onde a filosofia mostra também sua pobreza. Dá sim uma espiada em uma terceira transcendência, e o espanto filosófico fica quase insuportável. Mas essas últimas investigações de filosofia apenas destrancam a porta que conduz a essa dimensão; não podem abri-la.
Estou focalizando neste ensaio mais na questão de sabedoria no campo teórico, especulativo. Existe a possibilidade paralela de abordar a sabedoria por vias práticas, éticas. Sophia em grego, como sapientia em latim, até muitas vezes aponta primeiro para uma sabedoria no campo da ação humana. Uma pessoa “sábia,” na linguagem popular, tipicamente seria alguém que pudesse dar bons conselhos sobre nossas escolhas e comportamento.
Não obstante, a filosofia clássica e pré-moderna – com notáveis exceções, como sempre – priorizou uma valorização espontânea do conhecimento teórico, até como base imprescindível para informar nossas decisões e escolhas. A pessoa sábia em assuntos práticos sempre disporá de uma rica tesouraria de intuições teóricas. São elas que servirão de base para gerar bons conselhos. Por mais pragmático que nosso conhecimento sapiencial possa virar, ele começa, forçosamente, com perguntas sobre como as coisas são, antes de atender às questões sobre como elas devem ser.
Cedo ou tarde, a filosofia – como anteriormente as artes e as humanidades – terá que reconhecer a inaptidão dos seus próprios recursos para tratar, de forma adequada, de tudo aquilo que suas atividades revelam, sugerem e implicam. Terá que enfrentar o fato (um pouco desanimador) que nem todas as perguntas que a filosofia articula e explora se mostram suscetíveis de respostas propriamente filosóficas. Algumas até nem permitem formulação integral sem se aproximar, timidamente, daquela fronteira além da qual suas elucubrações nem sejam capazes de proceder. A intensidade do thauma filosófico começa a virar intratável dentro de um mundo revelado unicamente pela razão natural. É essa situação embaraçosa que seduz alguns a imaginar dimensões “religiosas,” ou “místicas,” dentro da sua ciência, ou da sua filosofia.
O fato, confirmado em exemplos nobres como no caso dos neoplatônicos, ou mesmo menos nobres no caso da “religião filosófica” de Auguste Comte, é que todo filósofo enfrenta, no desenrolar rotineiro das suas pesquisas, um limiar pelo menos “metafísico,” ou, para aqueles (como Comte) que não têm medo da palavra, “religioso.” Previsivelmente, a sabedoria filosófica se desemboca na busca obrigatória de uma terceira transcendência – mesmo se alguns concluam que a busca é frustra (mas a própria frustração virará uma declaração metafísica!). Ela se desdobrará em inquéritos de uma ou outra espiritualidade, religião, cosmovisão metafísica, ou simplesmente numa busca sem fim de uma “Grande Incógnita.”
Para alguns, essa procura formaliza-se em métodos de meditação ou até rituais extáticos, concebidos para dispor nossa mente a acolher uma revelação esperada; para outros, uma reivindicação contrária vai prevalecer, porque acham que o Transcendente já veio em busca de nós, com uma sabedoria encarnada (para judeus e muçulmanos, numa lei, ou para os cristãos, numa Pessoa).
Esta última busca costuma articular-se cognitivamente em um credo para o intelecto, um código moral para a vontade e um culto para o corpo. As tradições religiosas do mundo seguem, grosso modo, embora com variações importantes, este mesmo esquema. (Algumas reflexões sobre a religião em geral aqui: Filosofia da Religião) Mas não é com um discurso sobre religião enquanto tal que quero encerrar o ensaio.
Aristóteles falou que a tarefa do sábio é considerar as causas mais altas das coisas e assim julgar as coisas com acerto para depois dirigir, sabiamente, nossas ações. Porém, a abordagem aristotélica busca conhecer as coisas mais altas unicamente pelos esforços da razão natural, embora chegue à constatação da existência de um mundo transcendente (da terceira T). Os esforços filosóficos ficam aquém de qualquer acesso ao verdadeiro conteúdo daquele mundo. Só podia afirmar que a negação dos nossos limites, aqui embaixo, nos dá uma certa ideia do Ato Puro, Primeiro Motor e o último Telos. No entanto, a natureza dessa transcendência podemos apenas vislumbrar.
O caso mais célebre disso está nas conclusões das Cinco Vias de Tomás de Aquino para estabelecer a existência de Deus, a saber, que “isso” (ou seja, o que a gente está “provando”) é “o que costumamos chamar de ‘Deus’.” Mas esse Deus, nas palavras famosas de Alfred North Whitehead, não está disponível para usos religiosos. Ninguém vai erigir uma capela em honra do Primeiro Motor Imóvel. E, mesmo após os avanços metafísicos de Tomás na teologia natural, fica meio absurdo imaginar que, quando Jesus perguntou os Apóstolos sobre sua identidade, o Pedro podia ter dito: “Você é O ser mesmo subsistente.”
O intuito deste ensaio é de salientar – especialmente para os filósofos cristãos entre nós – que a filosofia não é auto-suficiente. Grandes representantes dela no último século (como Heidegger e Wittgenstein) até proclamavam sua morte, seu fim no mundo contemporâneo. Não estavam tão errados. A sabedoria filosófica não é capaz de sobreviver sem, de um lado, a contextualização dentro de uma mega-narrativa revelada pela fé e a teologia, e do outro, a humildade de reconhecer seus limites nativos. O pensamento propriamente teológico carrega mais amplitude e muito mais thauma do que a abordagem filosófica mais ousada. Recusar, minimizar ou mesmo só adiar o papel da teologia – ou, pelo menos, um sério engajamento com filosofia da religião – vai levar o filósofo par um zoom exagerado sobre ele mesmo e seu pensamento tão limitado.
À guisa de um resumo dos pontos principais do meu ensaio, afirmo que o desdobramento completo de uma sabedoria buscada com humildade e amor vai passar, ceteris paribus, pelo seguinte trajeto:
Primeiro, a concretude individual do nosso corpo se abrirá aos movimentos dos nossos membros dentro do mundo material; depois, esses movimentos se abrirão aos horizontes geográficos, históricos e linguísticos dos estudos humanísticos e à experiência vicária das belas artes (a 1ª transcendência); em seguida, toda essa experiência poética vai invocar a disciplina das artes liberais para depois se entregar às riquezas da filosofia e das ciências (a 2ª transcendência); e para quem lesse e seguisse, consequentemente, todos os signos presentes no mundo estudado, todo esse saber sobre nós e o cosmos se abrirá, finalmente, a uma revelação da parte do Transcendente mesmo (a 3ª transcendência). A sabedoria, agora encarnada, pedirá que entregássemos nossos corações não apenas a proposições, mas sobretudo a uma Pessoa, e nossas mentes a um discurso metafísico que não resiste a uma consumação teológica – tudo isso no serviço de um crescimento no amor que, aos poucos, nos levará aos primórdios de sabedoria mística no mundo dos dons do Espírito Santo.
Como último fruto, a mesma dinâmica sapiencial nos transporta, concretamente, ao único Deus pessoal, cuja natureza infinita será o objeto permanente de nossa sabedoria consumada: uma expansão, sem parar, de conhecimento, de amor, de espanto permanente, naquilo que muitos teólogos chamam da visão beatífica: ou seja, uma visão que faz feliz, perdidamente feliz. Mas será uma visão de Algo e Alguém que, do ponto de vista da nossa finitude, estará sempre crescendo e se articulando na nossa frente – uma contemplação que será, nas palavras de Máximo Confessor, “um repouso permanentemente ativo”.
Todos os movimentos dos nossos corpos, toda viagem, toda caminhada, e todas as artes e todas as humanidades, toda filosofia e toda ciência, com toda teologia e todo crescimento no amor são, sem exceção, partes da mesma jornada, rumo ao “último thauma” –
“- à riqueza da plenitude do entendimento e à compreensão do mistério de Deus, no qual se acham escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento.” (Col. 2, 2-3)