St. Justin Martyr

O sábio e o gnóstico (1ª parte)

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Entendemos por sabedoria uma visão verídica e aberta que versa de certa forma sobre a totalidade da realidade, tanto em termos teóricos quanto morais, e que seja, segundo a expressão de Platão, “sinótica,” vendo as coisas nas suas mais íntimas conexões. A tradição cristã ensina que ela existe em três modalidades em ordem ascendente: sabedoria filosófica, sabedoria teológica e sabedoria mística. Sobre elas, falaremos mais na segunda parte deste ensaio. Tentativas de separar as três, ou até de reduzi-las a uma só delas, resultam em toda uma série de confusões conceituais e até (segundo as ortodoxias semíticas) heresias. Eminente entre estas é o gnosticismo.

Embora suas manifestações sejam proteicas, evidencia-se sempre com algumas características típicas: estas podemos destacar nitidamente da sabedoria propriamente falando. É o que proponho fazer aqui. Muitas vezes pessoas bem-intencionadas nem sabem que estão seguindo um mestre ou uma filosofia que se comprometeu – pelo menos no espírito – com teses ou tendências gnósticas. O embuste é que essas teses são muito adeptas de camuflagem. Vivemos em um mundo repleto de ofertas de iniciação gnóstica das mais variadas. Por isso precisamos investir primeiro no trabalho de cortar pelo matagal delas; só depois poderemos enxergar a clareira sapiencial, e identificar seu caráter triádico.

A palavra grega, gnosis, é simplesmente um de um punhado de vocábulos que significam conhecimento (alguns outros seriam theoriaaisthesisepistemedoxa, cada um com um viés especial). A palavra gnosis é o termo de uso geral, como nosso “conhecimento”. Ocorre mais de 25 vezes até no Novo Testamento, e só uma vez em sentido pejorativo (mais sobre isso depois). Português, aliás, também tem outros termos mais específicos para conhecimento, como teoria, percepção, ciência, opinião, intuição, etc. De fato, cada idioma terá sua coleção de palavras cunhadas para tentar capturar a natureza fugaz dessa realidade que chamamos conhecimento, e de itemizar suas espécies.

O termo grego, no entanto, foi de certo modo “sequestrado” por algumas correntes filosóficas/religiosas dos primeiros séculos cristãos. Mesmo quando se colocaram em contraposição à Igreja Cristã, quase sempre se entenderam como uma radiografia das verdades esotéricas do cristianismo, encobertas pela igreja oficial. Esta gnosis desmascarada foi vista simplesmente como o âmago profundo da mensagem de Cristo, abaixo das aparências dos credos e ritos (o que foi o caso com o famoso Valentino). Os gnósticos tentaram efetivar um isolamento de certo tipo do conhecimento, “destilando” ele das demais fontes de cognição que ficam atreladas tanto aos credos teológicos, quanto às fontes de conhecimento filosófico: os sentidos e o senso comum, como também outras dimensões da experiência humana (em particular, a volitiva e a emocional).

*** Cabe observar, na defesa de pelo menos alguns gnósticos, que embora o credo e as crenças rudimentares do cristianismo já fossem bem articuladas, a teologia cristã não existia em uma forma definida e sistemática no segundo e terceiro séculos. Alguns gnósticos simplesmente tentaram montar uma reflexão racional, ou seja teológica, em cima dos artigos da fé. Não podiam aproveitar dos esclarecimentos dos concílios ecumênicos dos séculos vindouros, nem dos escritos dos capadocianos, do Agostinho, nem falar dos escolásticos posteriores. Então, não é o caso de simplesmente desprezá-los. Todavia, ideias têm consequências. A Igreja achou certas ideias deles necessitadas de correção por terem consequências menos desejáveis para quem quiser abrir-se à verdade. São as ideias gnósticas e não as pessoas que criticamos em seguida. ***

Este conhecimento “espiritual e transformador” foi apresentado como um tesouro esotérico tanto sagrado quanto secreto – mas um tesouro possuído exclusivamente por certos escolhidos e depois transmitidos a outros apenas através de certos cursos de longa duração ou por ritos iniciáticos. Na esperança de incorporar cristianismo nessa doutrina, Cristo foi apresentado sim como alguém enviado pelo Deus supremo, porém não para salvar o homem na sua totalidade alma e corpo, e do mundo em que ele vive. Pelo contrário, a missão do Cristo era, segundo eles, a de resgatar seu espírito interior da matéria e do domínio do “outro deus”. É a ele que se deve a produção do mundo físico, o famoso Demiurgo (por vezes identificado como o Yahweh do Antigo Testamento).

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Os estudiosos, em grande parte, rejeitam a ideia de um único movimento, mas vêem o “gnosticismo” – a denominação é moderna – como termo guarda-chuva para várias tendências e ideias que circulavam dentro e fora do cristianismo primitivo. Na verdade, constitui um paradigma permanente para a reflexão humana, surgindo repetidamente na história.

Para o gnóstico, o conteúdo da gnosis ensinada de certa forma espelha, objetivamente, uma luzinha espiritual que jaz, subjetivamente, nas profundezas do ser humano. O paradigma do projeto gnóstico manifesta-se em vários tipos de esoterismo (cristão, judeu e islâmico), mas também, mutatis mutandis, no hermetismo, catarismo, platonismos renascentistas, Rosa Cruz, Maçonaria, Teosofia, Antroposofia e perenialismo, para mencionar só os mais conhecidos. Também algumas das religiões organizadas se apresentam, explicitamente, como detentores dessa chave de harmonização de todas as tradições: em certo sentido o próprio Islã, mais evidentemente no Mormonismo e no Bahaísmo. Porém, quer se trate de uma seita esotérica ou de uma religião mais organizada, o que é oferecida é uma única cachaça destilada de uma multidão de bebidas fermentadas, só aparentemente diferentes.

O maniqueísmo, ao qual Sto. Agostinho aderiu por uns nove anos, é uma articulação especialmente bem sucedida, embora que diferente em alguns detalhes. Não obstante, a orientação geral fica gnóstica segundo os parâmetros que esboçaremos aqui. O interesse nessas correntes ganhou um enorme estímulo pela descoberta, em 1945, em Naga Hammadi, no Alto Egito, de manuscritos gnósticos que remontam pelo menos ao séc. 4º d.C. Essa considerável “biblioteca Nag Hammadi” abriu novos caminhos de pesquisa na interpretação dos textos sobreviventes, possibilitando uma descrição mais diferenciada de várias correntes gnósticas, tanto de pensamento quanto de mística. O cerne do gnosticismo estudado, porém, ficou inalterado nos seus traços fundamentais.

Semelhante ao caso dos Manuscritos do Mar Morto, descobertos pouco tempo depois, muitos especialistas da época proclamaram que os achados iriam mudar para sempre nosso entendimento, tanto do Antigo Testamento neste caso, quanto do Novo pelas descobertas egípcias. Agora mais de 70 anos depois, o consenso dos eruditos se distancia cada vez mais das declarações precipitadas dos primeiros anos. (ler Philip Jenkins: http://www.asor.org/anetoday/2017/10/revolutionary-biblical-discoveries)  

Vamos isolar apenas três aspetos que parecem imprescindíveis para entendermos a natureza dessa ideologia/filosofia/teosofia tão tenaz na história dos últimos dois milênios. Ceteris paribus, achamos essas características em todos os variantes:

1) O aspecto ponerológico/cosmogônico (ou seja, o que diz respeito à natureza do mal, e à origem do cosmos – no gnosticismo, inextricavelmente ligadas):

Uma orientação gnóstica propõe uma resolução do problema do mal através de sua identificação com uma realidade substancial, seguido por uma narrativa sobre o processo cosmogônico que a produziu. O mal não é, como os cristãos iriam dizer, uma privação do ente; tudo ao contrário, é algo. Esta positividade do mal possibilita aquilo que, na tradição cristã sempre foi visto como impossível: um verdadeiro  conhecimento do mal. Na revelação cristã, o mal e o pecado carecem de “razões,” e por não serem entidades criadas por Deus (e só existem entidades criadas por ele!), carecem uma coerência ontológica capaz de ser objeto de autêntico conhecimento. Fulton Sheen amava dizer que o pecado é a única coisa no mundo do qual você não aprende mais por experiência. Seria como brilhar a luz de uma lanterna sobre a escuridão para “entendê-la” melhor.

Em nosso mundo cognitivo, a única referência indireta ao mal é como negação de algo bom (como doença não faz sentido senão como negação da saúde). Mesmo assim, a força da verdade permitiu que até essa ponerologia acabou evidenciando um certo elemento verídico, porque na visão gnóstica o mundo realmente real é aquele da luz, da plenitude (pleroma), o mundo puramente espiritual; a matéria é vista como carecendo essa realidade. De certa forma, é também uma privação. Mas esse restinho da verdade não goza de um pleno aproveitamento no sistema, uma vez que a matéria é palpavelmente presente como algo positivo na experiência humana, e assim, sem mais delongas, a matéria, em toda a sua realidade óbvia, acaba – muitas vezes – sendo simplesmente identificada com o mal. Nas adaptações mais modernas, a mesma identificação aplica-se ao mundo humano, o qual também é visível e palpavelmente real. 

**Excursus: Seja dito de passagem que esta “privação” que é o mal, embora uma deficiência ou ausência em termos ontológicos, é, nos seus efeitosna nossa experiência, algo bem real. Um buraco, por exemplo, é uma ausência de algo que deveria estar aí (em um tecido, um vidro ou até, como ferido, em nossa pele), mas o buraco numa camisa pode ruinar a camisa, um buraco no vidro da janela pode deixar a casa fria e inabitável, e um ferido pode até matar a pessoa ferida.**

Para o gnóstico, “o conhecimento do bem e do mal,” longe de ser um fruto proibido ou uma maldição, torna-se uma conquista almejável e um norte “esotérico” para nossa conduta. De novo, uma grande parte dos gnósticos antigos viram essa existência má na matéria física mesma, especialmente na carne. Mas um gnosticismo moderno (identificado por vários analistas do mundo contemporâneo, como Balthasar, Voegelin e O’Regan) exibe uma análoga tendência em ideologias que restringem essa identificação a uma nação, uma raça, uma filosofia, uma orientação política, etc., como essencialmente e irremediavelmente malvada. Em suma, proponentes de qualquer versão de “demonologia secular” também fazem parte dessa orientação metafísica do gnosticismo. Para eles, o essencial é poder apontar com seu indicador ao mal, identificá-lo empiricamente, para depois atacá-lo com êxito.

Demonizações da direita pela esquerda, ou da esquerda pela direita, por exemplo, caem nessa confusão. No cristianismo existe essa divisão moral “a preto e branco” apenas no mundo angélico, e até lá, a influência dos anjos caídos entre os homens fica sempre limitada, e mesmo aproveitada, pela providência divina. A maldade humana, em contrapartida, é sempre variável e promíscua. A única linha divisória duradoura, segundo a imagem famosa de Soljenitzyn, é aquela que passa pelo coração de cada um de nós. Isso já nos leva à segunda característica. (Mais sobre o mal em breve.)

2) O aspecto antropológico:

Para o gnóstico, a situação do ser humano é sui generis em relação a esse mal: o homem acha-se circundado, ou até aprisionado nesse ambiente ou elemento mau. Mas porque toda a nossa cultura e pensamento parecem indicar algo mais do que material em nossa constituição, os antigos gnósticos falaram de nosso espírito como uma faísca imaterial que tinha caído da ordem divina. Ela ficou cativada dentro do corpo humano e seu mundo. Há toda uma literatura fantástica para explicar – de formas bem diferentes e às vezes contraditórias – como essa “queda” aconteceu. Naturalmente, o gnóstico vai empregar justamente este esquema para explicar o ensinamento sobre pecado original na tradição cristã.

Em vez de pertencer à essência humana, o corpo e seu mundo são vistos como prisões ou opressores, e a salvação alcançável unicamente por uma fuga da prisão. A libertação seria viável apenas através de uma penetração no interior, camada por camada, rumo a essa faísca. Os passos do nosso avanço iniciático progridem da nossa corporeidade na direção dos nossos níveis “psíquicos” (súteis), e de lá para nosso “espírito”. A própria linguagem de “camadas”, ou “níveis”, já deixa transparecer o espírito gnóstico. Desde que não é todo mundo que vai conseguir completar essa viagem até sua consumação, existem gradações de gnósticos: aqueles hílicos (“materialistas”, mal transcendendo o corpo); aqueles psíquicos (chegando a algumas intuições apenas); e os poucos pneumáticos (“espirituais”, ou seja, os plenamente realizados).

Uma consequência especialmente nefasta da visão gnóstica – em particular, nas versões que, explicitamente, demonizam ou desvalorizam o cosmos físico e o corpo – é que o homem, pelo menos na sua dimensão espiritual, acaba se posicionando acima do Demiurgo. Porém, para o cristão, o Criador do cosmos não é qualquer ente subordinado a Deus, muito menos um ente caído, mas é o próprio Deus supremo; assim, o ataque teórico contra o Demiurgo vira um ataque contra Deus. Uma tal auto-exaltação do homem tipicamente acompanha a antropologia gnóstica.

No cristianismo, o acesso “democrático” à salvação, à graça, e até à sabedoria, sempre foi um elemento alheio a essa visão. Para o gnóstico, a porta à verdade, a qual seria aberta a todo mundo no cristianismo, fica trancada a não ser para os pneumáticos. No entanto, os cristãos não negam, cabalmente, as hieraquias. Embora democrático no acesso à santidade (todo mundo é convidado ao último estado de perfeição e recebe também as graças necessárias), não é igualitário quanto aos resultados (os quais dependem da nossa livre cooperação). Há estágios de crescimento, e existe uma peregrinação espiritual para todo mundo (as famosas vias de purgação, iluminação e união), mas tudo isso progride em continuidade expressa com o credo, o código moral e o culto, os quais aprendemos como crianças. A fé mostra o caminho do amor, e os dons do Espírito Santo elevam as virtudes até à única meta: a perfeição no amor. E o amor se aperfeiçoa no encontro com uma Pessoa, aquela que seja o Caminho, a Verdade e a Vida.

Então, vendo tudo isso, qual seria, concretamente, o caminho da salvação para um gnóstico?

3) O aspecto soteriológico:

O gnóstico insiste sobre um certo tipo de conhecimento como unicamente libertador (ou seja, fonte de “salvação”), e certos mestres e métodos unicamente capacitados para dar acesso a ele. A passagem decisiva não é entre pecado e conversão, e sim entre ilusão e iluminação. A exigência cristã sobre o fundamento imprescindível da humildade e a meta suprema do amor, tipicamente falta entre os gnósticos, ou pelo menos fica seriamente reinterpretada em termos exclusivamente cognitivos.

Em sistemas gnósticos é o conhecimento que ocupa o orgulho do lugar – não a humildade e não o amor. Só pessoas “intelectualmente qualificadas” podem oferecer a iluminação cognitiva que revela a natureza desse mal. Em seguida, fornece métodos apropriados para liberar sua faísca do seu túmulo nas garras da materialidade (ou, nas formas modernas, do controle de grupos humanos identificados como malvados). Esses mestres vão fazer o máximo para vincular seus seguidores à sua pessoa, e caracterizar outras possíveis fontes de guia como pertencentes ao mundo escuro e confuso. Tais mestres não são identificados pela sua humildade ou seu amor, mas apenas por um certo “charme”, e, sobretudo, pelo poder do conhecimento (“knowledge is power”, como declarou Francis Bacon).

Típica também é uma tendência de confluir a noção de consciência (psicológica) com a de conhecimento, apresentando “níveis de consciência” mais altas como metas de uma libertação progressiva. Idealmente você chegaria a uma fusão da sua consciência e seu conhecimento em uma gnosis unificadora e soteriológica. Um exemplo de um proponente de uma teoria “integral” para unificar psicologia e espiritualidade (entre outras coisas), é o famoso guru do New Age, Ken Wilbur. Ele propõe 11 níveis ou camadas de desenvolvimento pessoal. Os seguidores de Wilbur e gurus análogos são inúmeros (mas conspicuamente entre classes econômicas mais abastadas), entre eles várias celebridades bem famosos. (https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_integral_thinkers_and_supporters)

O uso predominante de símbolos e mitos é especialmente marcante em movimentos ou filosofias de inspiração gnóstica (o que David Bentley Hart chama de uma “incontinência mitopoética”). Há uma insistência marcante sobre a importância da simbologia. O cristianismo, em contraste, coloca seu mistério fundamental (a Encarnação) dentro de uma história concreta e em um lugar particular. A comunicação da verdade no imaginário cristão é típica e necessariamente a imagem, e não o símbolo. (ver meu post Imagens e símbolos) Não obstante, símbolos desempenham um papel também na fé cristã, como em todo conhecimento humano, mas na teologia e na arte sacra esse papel é rigorosamente subordinado às imagens. O motivo desta subordinação é o fato de que os mistérios bíblicos se manifestaram em espaço e tempo reais, em dimensões concretas e criadas. Quem coloque a simbologia cristã acima da iconografia cristã já tem pelo menos um pé no gnosticismo.

A ênfase bíblica e cristã na historicidade dos eventos chega até dentro do seu uso do gênero do mito. A linguagem simbólica e mítica – o mito sendo, em certo sentido, uma narrativa composta de símbolos – é usada para evocar eventos reais de um passado remoto (criação do mundo, primeira queda do homem, etc.) ou de um futuro ainda além da descrição histórica (eventos escatológicos e apocalípticos). No entanto, esses dois extremos são entendidos como acontecimentos reais, embora além da caracterização literal. Eles não são meras metáforas ou vagas sugestões de realidades puramente espirituais, mas indicadores de coisas, pessoas e eventos concretos, de certa forma ainda mais reais do que os eventos historicamente acessíveis no grande drama entre o Alpha e o Ômega do mundo.

A universalização do simbolismo – por exemplo, na afirmação que tudo é símbolo – já está na beira do panteísmo, ou do monismo. Essas posições ensinam que a realidade criada seja, na verdade, nem criada, e sim emanada, ou pelo menos em uma continuidade entitativa com a essência divina. (Ver meu post sobre panteísmo: O universo é uma selfie de Deus?) Por outros termos, tudo que existe de forma contingente e limitada existiria apenas por ser uma manifestação inevitável de Deus (o “outro lado” de Deus, por assim dizer). No caso específico do gnosticismo, haveria, porém, uma dimensão “pródiga” da realidade: o mundo material (produzido por um Demiurgo ou talvez uma Sophia que tenha caído em erro), envolve uma ilusão, ou uma queda não apenas ontológica, mas também moral. Identificar, cognitivamente, essa ilusão ou esse “erro”, é parte crucial do tesouro do conhecimento gnóstico.

A visão bíblica não nega que a criação “canta as glórias de Deus” (passim nos Salmos), mas essa música tem como Grundmotiv a gratidão pelo dom da existência, um dom dado livremente por um Deus de amor, e que inclui, enfaticamente, o cosmos físico. Nosso cosmos não é uma realidade absolutamente necessária; Deus o criou com plena liberdade, o que, porém, não implica uma “escolha”. A criação desdobra-se com espontaneidade. O tema não é sobretudo manifestação ou reflexão necessárias, mas um magnânimo gesto de amor, uma superabundância gratuita e por isso mesmo um presente. Transborda e brilha, gratuitamente – como cada presente – justamente por não ser preciso. Esta é a razão porque cada busca de uma “explicação” da existência do cosmos, cada tentativa de descobrir uma causa necessária pelo Big Bang, tem que falhar. 

***

Podemos extrair desses três destaques o princípio dominante no gnosticismo em todas as suas manifestações – sejam quais forem a sua origem, o seu estilo ou as suas metas secundárias. É o seguinte:

O mundo – o mundo físico ou, nas versões mais modernas, simplesmente o mundo humano – não é como ele aparece. What you see is not what you get (O que você vê não é o que você tem).

O mundo é visto ou como uma ilusão total (em formas radicais, mas também marginais) ou, nas articulações mais costumeiras, como um ambiente dominado por forças clandestinas e malvadas. Se você quer realmente entendê-lo, será apenas por meio de uma gnosis especial providenciada por certos gurus.

O parentesco de uma tal visão do mundo com teorias de conspiração de todo tipo é óbvio: “o que lemos nos jornais é mentira; os políticos agem por influências de lobistas; as organizações ocultas controlam quase tudo”; e assim por diante. Existe uma vasta literatura que alimenta esses exageros, e quanto mais você lê esses textos, tanto mais você se entrega à ideologia sabichona do gnosticismo.

Como já mencionado, o cristianismo foi também integrado na visão gnóstica na Antiguidade, re-interpretando cada componente da fé cristã como parte da doutrina gnóstica. “O que tornou isso tão insidioso foi o fato de que os Gnósticos com frequência não quiseram deixar a Igreja.” (H.U. von Balthasar, The Scandal of the Incarnation, p. 1)  Mas 1) a doutrina da criação em termos metafísicos, e 2) a doutrina do pecado original como ferida, tendência e fraqueza, e não corrupção, em termos morais, faz com que o pensamento dos seguidores de Cristo – e especialmente na Igreja Católica, que no segundo ponto fez as definições essenciais – nunca virou um ambiente acolhedor para a cosmovisão gnóstica.

Para o cristão (e para outras religiões abraâmicas) o mundo é bom, a matéria é boa, e a carne (enquanto parte da natureza humana) é boa, como também seus prazeres – uma vez que o ser humano foi colocado no centro dessa criação material, “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom (Gn. 1,30). Aliás – e é isto que tem que ser destacado contra toda tendência conspiracionista – o mundo humano, a nossa sociedade, apesar de todas as guerras, as corrupções, a crueldade, a injustiça, os acidentes, as epidemias, etc. – apesar de tudo isso, a grande maioria dos homens opta por viver, e não quer morrer (por enquanto). Há mais carros que chegam no seu destino do que aqueles envolvidos em acidentes; há incomparavelmente mais pessoas sem doenças terminais do que com; há muito mais dias sem terremotos, furacões, tornados, etc., do que com. E assim por diante. (ver meu post sobre a assimetria precária entre o bem e o mal: Os 2 antípodas da transcendência).

Isso, contudo, não é motivo para sermos ingênuos. Este mundo, no final das contas, é muito triste mesmo. Mas se ele for insuperavelmente ruim e triste, a raça humana teria se suicidado em massa já há milênios. O fato é que o amor, a generosidade, a beleza e a seda pela justiça sempre se reerguem, e lutam nova e corajosamente contra o ódio, a ganância, a feiura e a injustiça. Isso é suficiente para animar nosso desejo de viver e travar nossa guerra.

Mesmo quando o mal goza de alguns triunfos mais espetaculares (o Terceiro Reich, o stalinismo, o maoísmo, os genocídios, o tsunami de 2004, etc.), ele finalmente é saudado e vencido por reações ainda maiores de virtude, bondade, sacrifício e heroísmo que transcendem, pelo menos em intensidade, as conquistas anteriores do mal. O bem está à frente da competição, mas o mal continua nos assombrando pela sua persistência (divinamente permitida). Teremos que lutar até nossa morte.

      * * *

Na segunda parte pretendo falar sobre as três sabedorias que se opõem, expressamente, às ideias gnósticas. Como veremos, para o cristão, embora a sabedoria filosófica não seja dominada pela sabedoria teológica, é sim ambientada por ela e assim lembrada da sua subordinação à Verdade em Pessoa. Essas duas sabedorias, por suas vezes, ficam ambientadas e alimentadas, progressivamente, pela sabedoria mística (aquela que chamamos um dos sete dons do Espírito Santo). Elas se fundam na âncora de uma humildade profunda e se orientam no alto e sempre desafiante ideal do amor. A humildade e o amor proporcionam suas pequenas doses de conhecimento apenas na ordem certa, e unicamente àquele que está crescendo nessas duas virtudes. Todo conhecimento distribuído por pessoas arrogantes e prepotentes, incapazes de aceitar críticas, e que atacam seus oponentes com ferocidade, já é poluído, por mais que contenha elementos de verdade.

Como diz Rémi Brague em seu livrinho, Curing Mad Truths, o problema com filosofias e ideologias erradas ou soberbas não é exatamente a falsidade do que ensinam, mas a desordem que colocam entre conceitos verdadeiros. Verdades “órfãs” são incomparavelmente mais danosas do que simples falsidades, porque a falsidade é fraca e se revela rápido. Verdades, mesmo avulsas, exibem resistência e certa durabilidade. São elas que dão ao Novo Testamento a única ocasião de falar de um “mau conhecimento” (“A ciência [gnosis] incha; é a caridade que edifica.” I Cor. 8,1).

Verdades, apesar de serem descontextualizadas, continuam gozando do poder ontológico da “inteligibilidade”, que é a fonte metafísica da própria verdade. Santo Agostinho, um dos homens mais inteligentes que já nasceu na Terra, conseguiu livrar-se do mundo gnóstico do maniqueísmo apenas quando aprendeu a humildade – e há só um único método para aprender humildade: a aceitação paciente de humilhações. Logo depois, esta virtude deixou seu coração arder com o calor da Verdade ordenada. Ele aprendeu o sentido do ditado: Ubi amor, ibi oculus. (Onde há o amor, lá também há o olho, ou seja, o conhecimento.)

Estejamos alertas sobre o perigo de conhecimento desordenado – a essência mesma do gnosticismo. Nas palavras de William Blake: “uma verdade dita com má intenção derrota todas as mentiras da nossa invenção.” *

St-Augustine-of-Hippo

* “A truth that’s told with bad intent, beats all the lies you can invent.”

Segunda parte do ensaio aqui: O sábio e o gnóstico (2a parte)

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