Desde que fui contratado há três décadas para ensinar Filosofia Medieval numa universidade secular brasileira, tenho tido tempo e recursos para mergulhar profundamente no mundo medieval. Desde a minha educação liberal nos anos 1970, já sabia que a Idade Média não apenas não foi uma ‘idade das trevas’, mas, ao contrário, apesar de abrigar guerras e doenças – algo que achamos em qualquer época – brilhou também com uma luz até lá desconhecida na história humana.
Sucessivas tentativas de erguer um Muro de Berlin entre a modernidade e o medievo – em bases literárias e artísticas, nos séculos XIV e XV; religiosas, no século XVI; científicas, no século XVII; e deístas e ateístas no século XVIII – esmoreceram, assim como tudo o que é bom e verdadeiramente de vanguarda em termos modernos mostrou-se inseparavelmente radicado no milênio medieval (outrora chamado de retrógrado).
A ideia de pessoa humana e de direitos humanos – praticamente desconhecida na Antiguidade – emerge coerentemente a partir da lógica mesma da revelação bíblica. Passa, elo por elo, dos argumentos cristãos contra a escravidão humana (os primeiros realmente conhecidos historicamente), aos argumentos atuais com respeito à pena de morte, tratamento humano aos prisioneiros, ou aos direitos dos seres humanos entre a concepção e o nascimento, direitos das minorias, e assim por diante. Nada disso faria sentido em um mundo pré-cristão, nem em um mundo mecanicista definido apenas em termos cartesianos ou newtonianos.
A lógica remanescente do pensamento cristão manteve esses princípios vivos; mas, na medida em que sua influência tem sido progressivamente erodida, ficamos abandonados cada vez mais ao nosso universo “escolhido”, ou seja, um cosmos mecanicista (ou alguma versão dele ditada pelos dogmas correntes do cientificismo). Tudo o que não podemos quantificar e medir começou a aparecer-nos como irreal. E, uma vez que não conseguimos fotografar uma pessoa no embrião humano, achamos que podemos purgá-lo como um parasita, caso ele atrapalhasse nossos planos. Será apenas uma questão de tempo, antes de nos voltarmos ao costume dos tempos antigos de descartar os bebês recém-nascidos, se eles nascem feios, deformados ou de um gênero não desejado.
De forma bem irônica, a justificada indignação pública sobre o abuso sexual de crianças e menores pelo clero – embora comprovadamente pelo menos tão presente em outras ocupações, e sobre tudo em famílias – dificilmente ganharia força sem o ethos sobrevivente da ideia cristã da intrínseca dignidade humana. Mesmo que o pensamento materialista pudesse nos colocar em dúvida sobre essa dignidade – especialmente quando olhamos em volta para as nossas caras adultas devastadas, cheias de fingimento e duplicidade -, a beleza extraordinária que ainda reluz nas faces dos infantes coloca nossos reducionismos naturalistas em cheque, ao menos por ora.
Profundamente equivocados, nos julgamos modernamente iluminados, imaginando que temos construído um edifício contemporâneo e coerente de direitos e liberdades por cortesia de recentes descobertas nas ciências e revoluções políticas. Na verdade, estamos apenas retocando os aspectos mais humanos do edifício medieval, usando os destroços do naufrágio da Cristandade. Somente o sentimento e a nostalgia romântica os mantêm intactos até o presente. Sem uma volta à nascente pré-moderna dessas convicções, a lógica do ateísmo e materialismo finalmente exigirá a sua eliminação.