Uma concepção comum sobre o Cristianismo dirá que ele consiste em crer em uma série de verdades abstratas com respeito a um Deus que é um e três, uma pessoa que é Deus e homem, e um pão que não é pão. No entanto, as dimensões mais teológicas desses artigos de fé serão elaboradas tão somente nos séculos após as primeiras pregações dos Apóstolos. Sem dúvida, de forma implícita estavam sempre presentes, e fazem parte integrante de um todo orgânico. Não obstante, vieram explicitamente à tona no decurso do crescimento desse todo, assim como flores e frutos surgem mais tarde na vida de uma árvore recém-germinada. As raízes e o tronco vêm primeiro.
As raízes, nesse caso, foram entendidas pelos primeiros seguidores de Cristo não como ensinamentos rarefeitos, mas como consequências e implicações de um fato. O Cristianismo se sustenta, ou desmorona, sobre a verdade de um fato empírico. Todas as elaborações da teologia e do magistério – por concílios e papas – surgiram subsequentemente a esse fato, cresceram em cima desse fato e apontaram insistentemente para esse fato. Sem ele, os ensinamentos teriam se tornado diáfanos sopros de ar. “Se Cristo não ressuscitou,” afirmou São Paulo sem rodeios, “logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé.” (1 Cor., 15,14) Mas, o que isso quer dizer exatamente?
O Mistério Pascal da Morte e Ressurreição de Cristo foi entendido, desde o início, como um mistério factual. Cristãos acreditam que Cristo realmente morreu (apesar da ideia de alguns muçulmanos que a morte foi fingida), e que depois ele realmente ressuscitou dos mortos (apesar das interpretações “espirituais” de alguns modernistas). A negação de qualquer um desses fatos esvazia o sentido mesmo da Páscoa. Acaba reduzindo as duas realidades mais concretas e historicamente enraizadas de todos os tempos a meros símbolos pálidos de verdades sobre um outro mundo. Não que um outro mundo não esteja envolvido. Mas o Mistério Pascal é uma verdade sobre este mundo e como ele foi mudado para sempre quando aquele outro mundo irrompeu nele.
Vejamos: imagine uma pessoa que você conhecia e amava, mas que – como todos nós mais cedo ou tarde – morreu. Primeiro: imagine-a quando viva e vibrante, com sangue nas bochechas e um brilho nos olhos. Depois, imagine ela imóvel e pálida em seu caixão. Até esse ponto a história é bem conhecida. Mas agora, imagine a mesma pessoa – poucos dias após o funeral e você ainda no meio de um luto quase insuportável – entrando pela porta da frente de sua casa, se aproximando de você e dando um beijo no rosto.
Tão logo você tivesse superado a dúvida inicial – talvez andando em volta dela algumas vezes, beliscando seu corpo e checando a sua respiração – dificilmente estaria inclinado a proferir abstrações ou ruminar sobre princípios metafísicos. Ao contrário, você sentiria que algo havia acabado de mudar para sempre na sua vida. E você começaria a contar a todo mundo sobre o acontecimento. O bicho-papão mais temido de todos – a morte – teria acabado de sofrer um dramático revés. Todo um universo de significados, outrora fixos e fadados, teria sido virado de ponta-cabeça.
Essa foi a primeira experiência do conteúdo do testemunho cristão – um testemunho da morte e ressurreição de um homem conhecido e amado por uma multidão de pessoas comuns. Essa morte ignominiosa e inegável – um óbito tão definitivo quanto o de uma mosca esmagada sob a sola do seu sapato – fora testemunhada e lamentada por uma turba de espectadores. Mas numa viragem dos eventos inédita na história, esta morte foi revertida e transcendida diante dos seus olhos.
O que foi testemunhada aqui foi a intrusão – neste, nosso querido mundo, marcado pela morte inevitável – de uma Vida pujante e transbordante, uma reviravolta total da reinante lógica da mortalidade. E a novidade – a mesma que deu seu nome ao Novo Testamento – foi no fato de que isso não se apresentou apenas como uma renovação “espiritual”, ou seja, a libertação de um espírito da prisão do mundo da matéria. Pelo contrário, aqui houve um reboot corporal: moléculas e células postas numa nova ordem do ser. Nada parecido tinha ocorrido desde o primeiro Fiat lux de Gênesis.
Milhões preferiram a tortura e até a própria morte em vez de negar esse testemunho. O brilhante e cerebral Saulo de Tarso era talvez o maior intelectual da sua época; em termos atuais, ele teria o equivalente a doutorados em Filosofia, Teologia e Exegese. Mas o Saulo de Tarso virou São Paulo do Evangelho apenas quando algo lhe aconteceu que nenhuma escola acadêmica podia prever. O encontro com Cristo Ressuscitado o levou de roldão, e nunca mais o superou. O manancial para todos os mistérios teológicos a serem definidos e detalhados em séculos vindouros – dogmáticos, morais, acéticos e místicos – é nada mais do que o deslumbramento permanente sobre o fato empírico da Páscoa.