
O bom Lutero havia aprendido em seus tempos de teólogo católico que: 1) as Escrituras, 2) a fé, e 3) a graça são, cada uma no seu jeito e no seu contexto, primordiais como fontes de salvação. Feitas as devidas distincões, nenhum teólogo católico vai discordar disso. Se ele tivesse apenas sublinhado isso com algumas expressões latinas precisas e memoráveis – tais como prima scriptura, prima fide e prima gratia – a Igreja teria apenas lhe agradecido por ter colocado essa primazia sob um foco mais exato. Contudo, algumas circunstâncias de temperamento, e uma preferência por estratégias retóricas, levaram-no a enfatizar aquela primazia de modo mais dramático, transformando-a em um atributo solo, único e exclusivo. Ele transformou o ordinal em cardinal.
Erasmo e o Cardeal Caetano tentaram amenizar a retórica do alemão, introduzindo distinções cruciais de que qualquer grande doutrina precisa para evitar aquele desvio chamado de ‘heresia’. Mas, não era para ser desse jeito. Uma conspiração de eventos e circunstâncias deu asas aos inegáveis dotes poéticos e retóricos de Lutero. Com a nova mídia social dos panfletos impressos, quem estivesse à frente dos meios de propaganda poderia facilmente silenciar as cuidadosas discussões doutrinais da tradição. Acrescente a isso os visíveis absurdos das vendas de indulgências pela Igreja na Alemanha – quase como se fossem bilhetes de loteria –, e a instituição milenar aparecia como muito carente de uma simplificação doutrinária. Assim ele esperava varrer esse escândalo do mapa.
Ênfase sobre só Escritura, só fé e só graça parecia feita sob medida para a ocasião. E assim surgiram os mantras protestantes tão familiares: sola scriptura, sola fide, e sola gratia.
A Igreja Católica – com um atraso lamentável – finalmente tiraria proveito desses exageros e produziria suas próprias fórmulas cuidadosamente balanceadas, tais como: Escritura e Tradição / fé e obras / graça e natureza (outras harmonias análogas viriam nos debates dos séculos posteriores, como fé e razão, religião e ciência). Esses são os ‘gêmeos não idênticos’ conceptuais, apropriados – daí por diante, de forma precária, mas tonificante –, para serem colocados sobre as escalas da verdade cristã. Foram formulados explicitamente em Trento, mas já vigoravam antes como parâmetros vivos de um milênio de teologia medieval.
Universos de Teologia e Filosofia Patrística e Escolástica já estenderam suas asas sobre o terreno marcado por aqueles pólos complementares; da mesma forma, milhares de igrejas, basílicas, monastérios e santuários bizantinos, românicos, góticos e renascentistas – cheios de afrescos, mosaicos e estatuária, igualmente balançados – também se ergueram gloriosamente sobre o mesmo terreno. O princípio do ‘tanto/quanto’, em vez do ‘um ou outro’, prevalece no Catolicismo, embora este também levasse aqui ou acolá a certos exageros transeuntes. Entretanto, no geral, o Catolicismo manteria aquele nobre equilíbrio do cocheiro que se inclina ora para a direita, ora para a esquerda, na medida em que seus cavalos correm resolutamente para frente. A corrida vai rumo a uma Verdade cada vez maior, mais abrangente – e mais imprevisível! – do que qualquer mente human poderia imaginar.