St. Justin Martyr

Dois antípodas da transcendência

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Muitas tentativas têm sido feitas para defender a teoria de que apenas a realidade física seja real. Não obstante serem embaraçosamente frágeis e descaradamente ideológicas as tentativas, sua principal reivindicação é que não há evidência conclusiva no mundo à nossa volta de que exista qualquer coisa além da massa e energia.

Os defensores deste naturalismo têm certa razão, na medida em que é possível conduzir experimentos científicos reveladores e produzir maravilhas tecnológicas, sem prestar atenção, explicitamente, a qualquer causalidade extra-cósmica. O que está implícito aqui não precisa nos deter no momento. Mas, mesmo o ponto explícito teria que passar ao largo de um Cila e Caríbdis que poderia naufragar a sua coerência. Há duas extremidades da experiência humana que periodicamente invadem nosso mundo, e quando o fazem, afogam a lógica do naturalismo em um ou outro de dois mares: ou no mar de júbilo, ou naquele de desespero.

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A maior parte de nossas vidas navega num mar de experiências comedidas, seja de prazeres e satisfações moderadas, seja de desconforto e dor irritantes mas toleráveis – ou, então, numa espécie de limbo entre as duas categorias. Tentamos navegar nessas águas do melhor modo que podemos. Contudo, provavelmente na infância – e certamente logo depois –, todos nós ficamos cara a cara com experiências que não são de forma alguma comedidas. Às vezes, deparamo-nos com um júbilo irresistível, a exibição de uma beleza ‘de cair o queixo’, um vislumbre fugaz de uma assoberbante glória não deste mundo, ou algum outro espetáculo que se recusa a encaixar-se em nossos conceitos mentais, ou ser articulado por nossa linguagem.

Pode ter sido um por do sol, o mistério encantador e inquiridor estampado na face de um infante, um súbito e inexplicável rompante de bem-estar, ou quem sabe uma audiência séria do Te Deum de Berlioz ou da oitava sinfonia de Bruckner – o que quer que tenha sido, levou-nos por um breve momento a uma fábrica de sonhos estranhamente ativa em nossa imaginação. Experimentamos – se for só por alguns segundos – um surto de esperanças loucas de beatitude antecipada, das quais mesmo o fenômeno passageiro que o gerou parece incapaz de dar conta.

Mas, infelizmente, esta visita alienígena também pode ter vindo do pólo oposto. Pode ter sido a notícia devastadora da morte de um ente querido, ou o testemunho da crueldade de uma doença incurável devorando o corpo de alguém (talvez o seu próprio), ou uma reportagem sobre as vítimas civis de uma guerra, queimadas e deformadas pelos horrores da moderna ciência da mutilação. Sejam felizes ou horrorosos, todos nós conhecemos momentos em que algo extraordinário acontece ao pequeno círculo de nossas vidas. Também sentimos que o nosso mundo imediato não seja em condições de gerar tais maravilhas e monstruosidades; parece, ao contrário, que algo de fora acaba de se intrometer no mundo, produzindo um episódio efêmero, seja de êxtase sobrenatural, seja de horror infernal.

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Essas invasões são como os ‘antípodas da transcendência’, ou seja, duas aberturas extremas por meio das quais energias incomuns penetram em nosso dia-a-dia. Elas trazem uma inequívoca mensagem de ‘há algo mais’. Porém, não são acréscimos pequenos ou modulações modestas. É o mal extremo que nos assombra nesses casos, assim como é o bem avassalador que nos magnetiza.

Quando testemunhamos a existência assombrosa e real de um assassino contumaz, e em seguida, num contraste quase cruel, a igualmente óbvia existência de um santo taumatúrgico – talvez no primeiro caso, um Charles Manson, e no segundo, uma Teresa de Calcutá. Nesses casos, notamos algo. Notamos uma similaridade, mas uma similaridade que nos deixa perplexos: ambos respirem os ares de um outro mundo. Mas os dois mundos dos quais a singularidade desses extremos toma fôlego têm em comum apenas a sua transcendência – o primeiro, um poço sem fundo de uma negatividade sufocante; o outro, um elevado píncaro de entidade radiante.

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Dante escreveu sua Comédia sobre esses domínios, mas qualquer um com um coração humano pode perceber suas breves epifanias mesmo na mais modesta das vidas. A maior derrota do naturalismo é que nosso mundo natural continua a ter estes momentos transparentes. Assim nos permite espreitas momentâneas nas dimensões transcendentes que nos cercam. São lembranças do fato que nossa vida terrestre é um ensaio para algo de que possuímos só vislumbres.

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