St. Justin Martyr

Consciência (psicológica) e consciência (moral)

hqdefault
Na maioria das línguas românicas, a apropriação da palavra latina conscientia deu-lhe uma dupla incumbência, a de ser uma palavra cujo uso serve tanto para a consciência psicológica quanto para a consciência moral. De certa forma, o italiano contornou essa (con)fusão, usando a palavra consapevolezza para a primeira e coscienza para a outra. O alemão segue o exemplo, com Bewusstsein e Gewissen. O inglês também, com consciousness e conscience. O francês, espanhol e português, contudo, usam o mesmo termo para ambas as formas de ‘percepção’ (conscience, conciencia, e consciência, respectivamente, embora mesmo assim, cada um manifeste a distinção explicitamente em seus respectivos adjetivos:   conscient/consciencieuxconsiente/concienzudo;  consciente/consciencioso). Essa flexibilidade linguística levou-me a pensar.

Apesar de o alemão rejeitar a mistura siamesa dos dois significados (inaugurando e aprofundando um novo papel para “consciência (psicol.)” – Bewusstsein –, com Hegel), foi com Kant que se chegou a uma insuspeita raiz da consciência teórica e cognitiva numa fonte mais profunda de certeza nos recessos da consciência moral. Por outro lado, simplesmente consultando a experiência no uso de qualquer idioma, não é muito difícil ver como a consciência moral requer uma consciência teórica de fins e valores para que a dimensão ética da nossa consciência seja ativada. Ou então – invertendo mais uma vez a comparação – se alguém não tem uma ativa consciência moral como norteadora a respeito da verdade no lugar da falsidade, da veracidade ao invés da mentira, do ser autêntico em detrimento do simulacro, então a consciência psicológica dessa pessoa cairia logo em uma confusão inescapável.

5337confusedman_00000005146

Toda essa promiscuidade semântica deve nos levar de volta, finalmente, para a palavra latina de origem. No meio de toda a clareza taxonômica e distinção que a língua de Cicero ganhou ao ser conduzida pelas traduções de Aristóteles, e pelas meticulosas elaborações da Escolástica latina, na Baixa Idade Média, é curioso que esta tenha resistido à cunhagem de duas palavras separadas para as duas citadas dimensões da consciência. O francês, o espanhol e o português podem, portanto, orgulhar-se de seu nobre pedigree latino, justamente no isolamento de um único vocábulo para expressar a consciência mental e a consciência moral, as quais os anglófonos, alemães e italianos distinguem de forma mais enfática.

Um bom metafísico clássico poderia afirmar que a verdade (na ordem teórica), e o bem (na ordem moral), ambos deitam suas raízes no ser (na ordem transcendental). Em outras palavras, a verdade é apenas o ser do ponto de vista do intelecto, assim como o bem é apenas o ser do ponto de vista da vontade. (Se quiséssemos percorrer todas as implicações espirituais disso, deveríamos acrescentar a beleza à discussão, mas, dado que nossos propósitos aqui são mais epistemológicos e morais do que metafísicos, podemos deixa-la de lado – ou melhor, pairando misticamente sobre nós – por enquanto). Portanto, a possibilidade, ou até mesmo a conveniência, da imbricação semântica entre a consciência psicológica e a voz interna da moralidade, expressa pela atmtightly-clasped-hands-in-monochrome-640.jpg__640x360_q85_crop_subsampling-2mesma palavra (consciência), pode estar perfeitamente em linha com a unidade metafísica do ser enquanto ser. Pode ser que é isso que atrai a prole semântica desse conceito a um copulação linguística como testemunho de uma interpenetração mais profunda, de caráter ontológico. Enfim, o “espírito,” na tradição clássica, é o tipo de substância que apresenta justamente essas duas formas características de atividade vital: intelectual e volitiva.

Isso se reflete inclusive nas formas sob-espirituais da vida sensorial (das quais nós também participamos), pois todos nós sabemos a diferença entre simplesmente perceber alguma coisa (digamos, com o olho, com o ouvido ou com a ponta dos dedos) e reagir emocionalmente àquilo que percebemos (nos deliciamos, sentimos horror, prazer ou qualquer outro “movimento” do que chamamos nossos afetos). Este é a manifestação no nível mais sensitivo, mais material, daquilo que notamos no nível espiritual com a intelecção e a volição, mas é a mesma dualidade – cognição/apetição – que está em evidência. Nós conhecemos materialmente pelos sentidos; conhecemos imaterialmente pelo intelecto (embora seja dito de passagem que mesmo conhecimento sensorial produz um tipo de imaterialidade, à medida que a sensação cria uma forma individual, a chamada species impressa sensitiva). Somos movidos materialmente por meio de emoções; mas, somos motivados imaterialmente pela vontade. Contudo, há outro aspecto dessa questão que precisa ser salientado. Obviamente, não são os sentidos que sentem, nem o intelecto que intui, tampouco é a razão que raciocina (sendo intelecto e raciocínio as duas dimensões de uma única faculdade espiritual do conhecimento).

Similarmente, não são nossas emoções que se movem, nem nossa vontade que se motiva. É tão-somente a pessoa, esse agente indiviso, que sente, intui, raciocina, decide, escolhe, ama, odeia e tudo o mais, e faz isso por meio dessas faculdades e operações. Isso porque apenas a pessoa é uma verdadeira substância (algo que existe em si mesmo); todas as suas faculdades e atos são meros acidentes que inerem à substância, que são nela, por ela e através dela; dificilmente haverá uma preposição que não possa ser gramaticalmente fatorada nessa relação. A intencionalidade do conhecimento humano é a mãe das preposições gramaticais.

AMC_MM_S7B_714_Inside_PersonToPerson
O ser da pessoa, portanto, é o que está no centro do universo, gozando de um grau de realidade, de unidade e de poder que somente ela possui. Quando suas atividades vitais atingem o ápice de seu desenvolvimento, a consciência da realidade, juntamente com as implicações morais dessa consciência, se incorporam naturalmente à unidade indivisa da pessoa. A verdade e a bondade do ser entram numa perichorese (circumincessio, uma coabitação mútua, uma inter-permeação) que convida uma única expressão soberana a reunir toda sua grandeza dual em um único vocábulo.

Conscientia, em Latim, não se constrange a desempenhar um duplo papel, não mais do que nossa língua (de carne) é sobrecarregada por ter de falar em um momento, e provar um sabor em outro; ou nossa mão ficar confusa por nós a usarmos primeiro para pegar uma xícara de café, e depois acenar para um amigo. A Verdade e o Bem olham ambas para a sua matriz comum: o Ser. Não há razão que nos obrigue – com licença aos meus leitores falantes do inglês, italiano e alemão – a repartir seu respectivo conteúdo semântico em dois substantivos separados, quando um substantivo – com dois significados tão apaixonadamente abraçados – pode fazer muito bem o seu trabalho.

Uma última observação sobre a importância tanto de se manterem vivas as duas e distintas dimensões de nossas vidas conscientes e conscienciosas, quanto de defender a inviolabilidade do seu “lacre”.  Muito da espiritualidade superficial em voga hoje tem a ver com “elevar nossa consciência” ou explorar novos níveis de consciência. Eu me recordo que, quando o reprocessamento no Ocidente das tradições meditativas orientais foi oferecido pela primeira vez à minha geração nos anos ’60, muitos de nós fomos por elas atraídos – eu também! – precisamente porque elas lidavam com a consciência mental e psicológica, e menos com a consciência moral (tenhamos nos dado conta disso ou não). Ou, em outras palavras, poderíamos praticar a meditação e ser “espirituais”, ao mesmo tempo em que éramos sexualmente promíscuos, escolhendo também entre um generoso cardápio de drogas psicotrópicas.

tumblr_npe4ug2n7j1rlrvyso1_500
A moralidade não era mais vista como parte da espiritualidade, mas só uma preocupação meio neurótica dos ocidentais. Festejávamos em nossa inocência (e estupidez) adolescente. Entretanto, qualquer olhar sério aos Sutras de Yoga de Patajali ou ao Caminho Óctuplo do Buda mostrará também que, tanto na teoria quanto na prática orientais, a verdade e o bem (a moralidade) caminham, como no Ocidente, de mãos dadas. A separação das duas não encontra qualquer respaldo em uma autêntica espiritualidade oriental, mas sobretudo apenas nas distorções ocidentais (embora a relação entre ser e dever – como muitas outras distinções – se articule de forma diferente no Oriente).

Estados de consciência estimulados psicologicamente (ou até quimicamente), mas não acompanhados e nutridos, moralmente, por traços de bom caráter e virtudes sempre crescentes, causam mais mal do que bem. Como os dois olhos em nossa cabeça, ambos – consciência e “conscienciosidade” – pertencem uma à outra, tornando-nos ao mesmo tempo seres cognitivos e éticos.

A dualidade dos olhos, porém, está no serviço de uma tri-dimensionalidade na visão. É assim também com essas duas capacidades cognitiva e afetiva, porque geram uma tríade de dimensões na unidade da pessoa. Em linguagem metafísica: nossa entidade visa constituir-se pela unidade e integridade da nossa pessoa, a qual se manifesta na verdade e veracidade do nosso inteleto, na bondade e amorosidade da nossa vontade, e ultimamente na beleza da santidade do nosso coração. Assim nossa consciência dupla revela no ser humano aquilo que a filosofia tem procurado desde seu surgimento na Grécia – a saber, a cobiçada plenitude tridimensional do Verdadeiro, do Bem e do Belo.

trojice-perichoresis

Share / Compartilhe