St. Justin Martyr

Mudar nossa natureza?

 

Há coisas às quais não mais nos referimos. Presumivelmente estabelecidas de uma vez por todas, contextualizam, ou jogam seu feitiço sobre tudo aquilo que pensamos, dizemos e fazemos. O pequeno conjunto de primeiros princípios (“algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo,” etc.) está entre eles, mas são poucos e compartilhados por virtualmente todos os nossos ancestrais.

Contudo, de duzentos e poucos anos para cá, nasce um novo pressuposto tácito, adotado, na primeira instância, apenas pelos modernos que se acham “esclarecidos”; e esse pressuposto está errado. Não obstante, uma vez que ganhou força no seu cantinho clandestino da nossa consciência (como o Mágico de Oz atrás de sua cortina), virou imperioso e fica irritado e acuado quando exposto à luz. Trata-se da tese de que vivemos hoje em dia no cume privilegiado da história.

Com tranquilidade e confiança, presumimos ter escalado a montanha do tempo o suficiente para olhar para trás e ver, de forma exata e acusatória, o passado balbuciante que nos trouxe até aqui. Somos historicistas de carteirinha, embora costumemos manter a carteira fundo nos nossos bolsos. Decretamos – embora que tacitamente – que tudo é determinado pela história e, a despeito de nossos problemas atuais, consideramo-nos tão abençoados pela ciência e pela tecnologia, que podemos olhar desdenhosamente para o nosso passado. Suspiramos agradecidos ao acharmos finalmente em posição de nos livrar dos velhos erros e contemplar o lento desvelar da verdade final, cortesia dos serviços da ciência contemporânea.

Ora, essa convicção presume algo que poucos ousariam admitir, mas que se segue passo a passo da definição dos seres humanos como “filhos de seu tempo.” Alguns cientistas e não poucos filósofos já aderem a isso. Trata-se do novo e vanguardista ensinamento de que a natureza humana muda com o tempo. Obviamente um corolário de certos descendentes filosóficos do evolucionismo (ainda que a conexão seja cientificamente tênue), presumimos que algo profundo e constitutivo, e que adquirimos apenas por meio da mudança histórica, torna-nos qualitativamente diferentes da maioria de nossos antepassados. E aqueles antepassados do Ocidente pré-moderno – assim como todos os não-ocidentais – tornam-se parecidos quase com outro ramo sub-humano dos primatas, pois eram desprovidos das conquistas modernas para explicar e controlar o mundo.

Os biólogos nos dirão, é verdade, que mudanças evolutivas apreciáveis requerem não apenas séculos ou milênios, mas milhões de anos. Mas, não se preocupe – alguns deles já estão aplicando os princípios da seleção natural à cultura e ao pensamento e até mesmo à história documentada. Os estratagemas que eles criam para escapar do sempre presente bicho-papão da auto-referencialidade (ou seja, tentativas de se esquivar do efeito-ricochete de suas declarações relativizantes sobre a validade dessas mesmas declarações) são frequentemente criativas e divertidas, mas dificilmente convincentes. 

Então, lembremo-nos de alguns fatos. Nos profundos recessos das cerca de 30 trilhões de células de nosso corpo, os cromossomas ainda não passam de 46. Era também o caso ao menos desde que podemos datar o homo sapiens sapiens, aproximadamente algumas centenas de milhares de anos atrás (suspeito que possamos recuar muito antes disso, mas não colocarei minhas intuições de amador aqui).

Quando, no século XIX, se decifraram os hieróglifos egípcios pela primeira vez, esperaram encontrar naquela cultura tão antiga um depósito arcano de um fluxo de experiência humana totalmente diferente. Mas a surpresa veio ao se descobrirem relatos sobre esportes, mercearias, idas ao médico e outras coisas acostumadas do dia-a-dia humano. E a típica imagem do homem das cavernas “primitivo” há muito foi quebrada. Caverna após caverna foi descoberta mostrando quase uma exibição de arte, com paredes pintadas com misteriosas pinturas de uma sofisticação que impressionou até Picasso.

O que quero frisar é que falta evidência de que a nossa natureza tenha sofrido mudança alguma, e que, a despeito da nossa atual intromissão frankensteiniana com genes e clones, não há qualquer projeção razoável de tal mudança num futuro previsível. A natureza prevale sobre a história.

Todas as nossas emoções e pensamentos básicos podem ser adequadamente expressos em qualquer das 6000 e tantas línguas ainda faladas na Terra. Ainda que a tradução seja difícil e aproximada, somos capazes de escoltar os sentidos óbvios de dentro das línguas antigas e exóticas até formulações inteligíveis nas nossas línguas contemporâneas. Penetramos os fonemas estranhos até um fundo comum de vida humana e de referências do sentido já conhecidas. Mesmo os clássicos do passado antiquíssimos – e os oceanos da experiência, sabedoria e beleza de tempos remotos – estão, com aplicação de um esforço proporcional, disponíveis a nós hoje. A razão é simples: compartilhamos a natureza daqueles que os produziram. O que temos em comum com eles de longe supera as diferenças com eles, as quais existem – as mais das vezes – só em termos de velocidade e poder.

A maior parte da frenética velocidade de nossos carros e aviões, bem como a potência de nossos computadores, ainda serve à comunicação e até à comunhão humanas. Posso ter mais capacidade de processamento em meu smartfone do que tinha o foguete que levou o homem à Lua em 1969; mesmo assim, uma boa parte dos nossos usos desse aparelho é só para dizer ‘oi’ a um amigo, ou para pedir uma pizza.

Eu, de minha parte, gostaria de descobrir os segredos dos séculos passados que, ao contrário do nosso recente e tão celebrado século XX, não massacraram por volta de 100 milhões de pessoas em guerras, gulags, campos de concentração e loucuras coletivistas, tampouco encheram os mares com mais garrafas e sacos plásticos do que as estrelas do céu. Aquele século, tão badalado como hip e iluminado, nem chegou a entender a própria natureza humana, e por isso essa natureza sofreu as consequências.

De qualquer forma, deixemos que a ciência continue avançando (aplauso moderado aqui), e usemos a tecnologia produzida por ela (como este blog). Mas, sejamos aventureiros e aprendamos o máximo possível sobre as outras possibilidades da natureza humana – elas ainda estão aí. Leiamos Homero, Platão, Aristóteles, Virgílio, Agostinho, Tomás de Aquino, Dante; e demos uma olhada também em um Upanixade, em um sutra do Buda, ou nos Analetos de Confúcio.

Uma pandemia da doença de Alzheimer cultural continua a se espalhar pelo mundo. Não queremos saber nada que não seja faiscante e novinho. Cícero disse em algum lugar que a pior prisão de todas é ser filho do seu tempo. Nesta prisão, nossa realidade humana recua. Mesmo se não for possível mudar a nossa natureza, sabemos agora que é bem possível destruí-la.

Share / Compartilhe