Bernard Kelly e o vigor do pensamento leigo
Gerald J. Russello
A CATHOLIC MIND AWAKE – The Writings of Bernard Kelly. Edited by Scott Randall Paine. Angelico Press, 2017. (UMA MENTE CATÓLICA DESPERTA – Os escritos de Bernard Kelly) – ainda sem tradução para o Português.
Este livro é um bem-vindo e importante ato de recuperação. Bernard Kelly (1907-1958) foi um católico comum, que viveu em Windsor com uma grande família e trabalhou como bancário. Mas, Kelly tinha outra vida.
Por quase três décadas, Kelly forneceu ensaios filosóficos sofisticados e resenhas, em primeiro lugar para o Blackfriars, o prestigioso periódico dos Dominicanos. Nessa coletânea, os escritos de Kelly são vistos pela primeira vez desde sua publicação original.
Não é claro, a partir da excelente introdução de Scott Randall Paine, um professor de filosofia da Universidade de Brasília, o que levou Kelly à sua estranha vida dupla. Entre as demandas de seu trabalho e de seus seis filhos – sem falar da tuberculose que o abateu por dois anos nos anos 1940 –, claramente alguma força motora o compeliu a escrever de modo a entender os desafios filosóficos e religiosos de seu tempo.
Kelly escrevia na esteira de uma grande série de convertidos católicos, desde John Henry Newman a Christopher Dawson, passando por G. K. Chesterton e Eric Gill, cuja apologética e outros trabalhos definiram o catolicismo inglês por um século. Kelly foi herdeiro e defensor dessa tradição.
Dado o período em que ele escreveu, seus escritos aparentemente mostram a confiança filosófica do tomismo de meados do século, antes das convulsões dos anos 1960 e 1970. Contudo, nesses escritos, veem-se mais do que exposições secas: Kelly tem lampejos intuitivos derivados de sua vivência nas finanças e como homem de família que conecta suas preocupações filosóficas com o mundo como um todo. Há muito mais aqui do que se pode suspeitar à primeira vista.
O livro é dividido em quatro seções principais, cobrindo tópicos que vão desde Gerard Manley Hopkins (de quem Kelly foi um crítico astuto e sensível), à justiça econômica e àquilo que hoje seria chamado de religião comparada.
Num ensaio de 1935, “The Bourgeois Position” [algo como ‘a atitude burguesa’], Kelly liga as falhas dessa atitude ao pecado da preguiça, que é como uma lassidão espiritual. Kelly não fala da perspectiva de um monastério ou reitoria, mas desde o mundo dos negócios. Ele sabe o valor do livre mercado e o que é preciso para cuidar da família, mas também conhece a tentação de pensar que o sucesso econômico é tudo o que importa. Mas, a despeito de tudo, ele conclui que um católico não pode ser inteiramente ‘do’ mercado. Desta crença “deriva o modo de sua espiritualidade burlesca… Deixa-o à vontade para ir à igreja. Buscador de conforto em tudo, ele impôs à religião… os limites de seus sentimentos relaxantes, preenchendo o corpo de sua fé com um caloroso brilho sentimental”.
Kelly escreveu durante as perturbações econômicas dos anos 1930 e rejeitou a solução comunista em virtude do ateísmo e da natureza essencialmente desumanizante dessa solução; ao invés disso, “o impulso da ética cristã não pode bloquear a melhoria da natureza das atividades industriais e dos produtos industriais.”
Atuando no pensamento distributivista, Kelly defendeu que o trabalho deveria ser belo e humanamente proporcionado; com isso, ele não era um nostálgico, mas procurou explicar os princípios sociais católicos no mundo real.
O outro assunto que distingue Kelly é sua interação leiga com as religiões não cristãs.
Kelly, por exemplo, correspondeu-se por anos com o importante filósofo indiano e historiador Ananda Coomaraswamy, que se tornou um interlocutor para Kelly entre as tradições filosóficas ocidental e oriental. Essa coletânea contém os resultados dessa conversação que perdurou por toda a vida de Kelly.
Essa pode ser uma estrada perigosa; outros católicos que buscaram uma filosofia ‘perene’ sob as especificidades das diferentes tradições, por fim, perderam a sua fé. Mas, a interação com essas tradições não pode ser evitada no mundo moderno.
Kelly se nos apresenta como um modelo de católico não temeroso de mergulhar profundamente em textos hindus (aprendendo Sânscrito para isso), a fim de entender os conceitos não cristãos acerca do divino, mas tampouco esquecendo-se de levar o Evangelho consigo. O seu discurso de 1956 à Sociedade São Tomás de Aquino de Cambridge, publicado como “A Thomistic Approach to the Vedanta” (Uma abordagem tomista do Vedanta) faz exatamente isso discutindo a metafísica tomista no contexto das escrituras hindus.
Todo o conhecimento nos é dado para nos ajudar a chegar à verdade, acreditava Kelly, e outras tradições podem nos auxiliar a vermos Deus de nossa perspectiva. Que ele mantivesse sua fé, e até mesmo a fortalecesse, isto é óbvio, tal como se reflete numa profunda meditação sobre a Via Sacra em 1956.
Como nota Paine, Kelly morreu antes que o Papa Joao XXIII anunciasse sua intenção de chamar o Concílio Vaticano Segundo. Não sabemos como Kelly teria reagido a esse evento marcante, apesar de que ele certamente teria recebido bem a ênfase renovada do laicato no desenvolvimento do pensamento da Igreja.
Esse volume lembra-nos do vigor do pensamento laico quando aberto tanto às questões contemporâneas quanto ao pensamento da Igreja.