Eu adoro saudar novos desafios às minhas convicções mais profundas. Ontem, encontrei um que ficou girando em minha mente como um abutre a noite toda. Quando ele finalmente desceu para atacar, eu estava pronto. Primeiro, o desafio.
Uma razão para considerar a religião como produto de fantasia, satisfação de desejos e pensamento frouxo, e a ciência como a única via confiável para a verdade, poderia ser que a ciência é, fundamentalmente, uma, ao passo que o nome da religião é legião. A ciência tende a mover-se convergentemente rumo a um consenso global e, uma vez que a teoria da gravidade, a tabela periódica dos elementos, um buraco negro descoberto – ou qualquer novidade científica que se queira citar – são suficientemente testados e provados, a unidade da empreitada científica parece mais uma vez confirmada.
As religiões, contudo, não apenas se apresentam em campos múltiplos e auto-contraditórios, mas estarão para sempre gerando novas seitas e denominações, como uma barulhenta ninhada de coelhos. De que mais provas se precisa de que a religião deriva não do conhecimento de alguma verdade coerente, mas sim de uma multiplicidade de superstições humanas, emoções e viagens imaginativas?
O argumento soa bem, eu admito. Se tivéssemos de parar de pensar por aqui – e muitos param aqui mesmo – ele poderia parecer um gol de placa. Há, contudo, pelo menos dois problemas sérios nessa fórmula simples.
O primeiro tem a ver com a suposta unidade das ciências; o segundo, com o verdadeiro significado da multiplicidade das religiões. Consideremos primeiro as ciências. Em uma postagem anterior (Algo está faltando), destaquei o considerável desafio que as ciências físicas estão encarando atualmente após a descoberta de que quase 95% de seu objeto de estudo tem, até agora, estranhamente, fugido à detecção. Com esse elevado grau de ignorância, é difícil imaginar como qualquer cientista contemporâneo – a despeito de todas as suas inegáveis conquistas – pode reivindicar uma síntese completa e saudável ou uma coerência acabada. E não nos esqueçamos que a sonhada “teoria unificada,” perseguida pelo grande Einstein – esperando colocar a mecânica quântica e a relatividade sob um guarda-chuva matemático (e que, de resto, abarcaria apenas os 5% restantes da realidade material) –, ainda está esperando por suas equações.
Apesar do sonho do velho Descartes de que todas as ciências poderiam de alguma forma desvelar seus mistérios por meio de um único método universal, elas continuam a ignorá-lo e a florescer robustamente no plural. E elas o fazem precisamente aplicando seus próprios métodos distintos, algumas até mantendo um tipo de autonomia epistemológica. A ciência, com os seus sempre cambiantes paradigmas, pode nervosamente tentar encurralar seus múltiplos dados e teorias num único cercado, mas ainda lhe falta apresentar uma reivindicação fidedigna de de um corpo monolítico de doutrina, nem perto disso. Como ironizou Niels Bohr, “o oposto de uma verdade profunda pode ser uma outra verdade profunda.”
Contudo, pelo menos podemos afirmar com confiança que as religiões são desesperadamente múltiplas, certo? Múltiplas, talvez; mas desesperadas, dificilmente. Praticamente toda religião se apóia no pressuposto de que há dimensões da realidade transcendentes àquela tocada por nossos sentidos e medida por nossos instrumentos, e que o todo dessa entidade remota não é apenas mais extenso do que o universo físico, mas também mais intenso, variado, heterogêneo e complexo. Como cada tradição religiosa sustenta que nossa conexão com essas regiões elevadas é importante, mas de alguma forma comprometida, a religião propõe caminhos, técnicas, ritos, ou oferece graças por meio das quais a nossa comunhão com aqueles mundos elevados pode ser restaurada.
Uma vez que existe multiplicidade naquelas regiões transcendentes do real, haverá igualmente uma multiplicidade de formas com as quais esta ou aquela religião franqueia o acesso àquelas regiões, e também de qual “parte” daquele mundo seja acessada. De fato, a variedade das religiões coloca desafios às reivindicações de verdade de cada religião, e ninguém dirá que esses desafios já foram respondidos. Porém, dizer que a multiplicidade de credos, livros sagrados, cleros, ritos, sacramentos e todas as igrejas, templos, sinagogas, mesquitas, gurdwaras e pagodes do mundo prova a não existência daquela transcendência, é como dizer que o fato de que existem milhares de línguas faladas no mundo prova que não há nada a dizer.