A resposta curta é: não. Uma resposta algo mais longa, porém, dará um pouco de legitimidade àqueles, de início, seduzidos pela ideia. O Gênesis e as religiões abraâmicas insistem enfaticamente que o mundo e tudo o que há nele não são divinos, e que o fato de uma criatura se pensar divina é, com efeito, a fonte de todo o mal. Mas, a coisa não é tão simples assim.
O mesmo livro do Antigo Testamento ensinará, com igual autoridade, que fomos criados “à imagem e semelhança de Deus”. Portanto, já somos semelhantes a Deus de certa forma, ainda que também estritamente proibidos de buscar a semelhança com Deus de outro modo. O consenso teológico atribui a imagem de Deus em nós ao nosso ser pessoal e às nossas faculdades espirituais (intelecto e vontade). O fruto proibido seria uma expropriação dos “direitos divinos” de determinar o que é certo e errado (simbolizado pela árvore do conhecimento do bem e do mal). Mas vamos considerar apenas a questão mais abstrata e metafísica, a saber: Como é possível o Absoluto (Deus) coexistir com o Relativo (a Criação)?
Duas soluções populares ao problema do Uno e do Muito – do divino e do criado – são o panteísmo e o monismo. O primeiro diz que o universo já é divino, ou seja, que a única “realidade absoluta” é o cosmos mesmo na sua totalidade. Recordamos o credo de Carl Sagan, segundo o qual “o cosmos é tudo que existe, tudo que existiu e tudo o que algum dia existirá”. Com apenas uma leve modulação conceitual, o monismo simplesmente proclama que tudo é um. Embora ambos descartem a dualidade e pareçam defender a mesma coisa, há entre eles uma diferença sutil, porém crucial.
No panteísmo, o universo ganha um upgrade, seja por ser considerado idêntico a Deus (em algumas formas), ou uma dimensão d’ele (como em Espinosa, por exemplo). Por outras palavras, em vez de recorrer às sombras platônicas ou às mayas evanescentes, o panteísta proclama uma identificação cabal. No monismo, contudo, a ênfase é na unicidade, e é a multiplicidade – na qual o universo se orgulha – que é degradada a uma tênue aparência. O cosmos fica, no máximo, um carrossel fantasmagórico de indicadores, todos apontando para o Uno e em seguida desaparecendo; na pior das hipóteses (mas, mais coerente do ponto de vista lógico), uma ilusão.
A doutrina da criação não sucumbe a qualquer dessas evasivas simplistas. Se Deus é nada mais do que o universo, vira um deus diminuído, e faríamos melhor em jogar fora nossos livros de orações e cantar E=mc² como nosso único hino cósmico. Se continuarmos insistindo em chegar a qualquer ‘além’, acharemos mais satisfação no estudo de astrofísica, sem fantasias teológicas. Já possuímos meios racionais para desmistificar ilusões óticas do nosso mundo, claro, mas a realidade do mundo fica continua soberana. Apesar de a aparência de água sobre o asfalto possa ser uma ilusão mesmo, as cataratas do Iguaçu não o são. Nossos materialistas estão certos de que este mundo é muito real para ser taxado de ilusão.
Entretanto, há uma outra abordagem da questão. Como sempre, as estrelas nos ajudam a entender as coisas elevadas. Estrelas sem planetas ainda assim brilham, mas aquelas com planetas não apenas brilham, mas também têm a sua luz refletida. Ora, a quantidade de energia luminosa não muda neste caso, mas sim a iluminação (em latim há até duas palavras: lux para a luz direta, e lumen para a luz refletida). Esta me parece a melhor analogia disponível para esclarecer como a criação pode ter aquilo que Tomás de Aquino chamou de novitas essendi (novidade do ser), sem, contudo, diminuir ou comprometer a infinidade do ser de Deus.
Como é com nosso sistema solar, onde há mais coisas iluminadas, mas nem por isso mais luz do que uma estrela do mesmo tamanho, mas sem planetas, assim também é com a criação: há mais seres, mas não mais ser. Deus é, nas palavras de Tomás de Aquino, não mais um ser entre outros (nem o “Máximo”), e sim o Ser Mesmo Subsistente. É totalmente transcendente ao universo justamente por ser radicalmente imanente a ele como sua causa. Ele está no universo como Machado de Assis está nos seus romances, não como protagonista ou parte do enredo, mas como causa transcendente dos protagonistas, do enredo e do romance todo – dentro dele por ser causal e soberanamente transcendente a ele. Aquilo que Cristo vai exigir dos seus seguidores, de ser “dentro do mundo, mas não do mundo”, se aplica metafisicamente à relação entre Deus e o universo.
Ora, compartilhar o ser é, de certa forma, como compartilhar o conhecimento ou o amor. Santo Agostinho ensina-nos que repartir coisas materiais é ter menos do que teríamos se não tivéssemos repartido; mas, ao compartilhar coisas espirituais, obtemos, paradoxalmente, mais delas. Divide um bolo ou um saco de castanhas com alguém, e terminará com menos bolo e menos castanhas; mas divide o seu conhecimento ou o seu amor com alguém, e acabará com mais conhecimento e mais amor. Se isto é verdade acerca dessas realidades espirituais, quanto mais acerca da raiz de todo conhecimento e todo amor, que é o Ser mesmo.
Entretanto, temos de virar Agostinho um pouco de ponta-cabeça. Você pode não perder coisa alguma quando compartilha bens espirituais, mas no caso do Criador, há um bem que jaz além da distinção entre espiritual e material, cujo compartilhamento – mesmo se não lhe traz qualquer perda – também não lhe traz qualquer “ganho”. De novo, é simplesmente o ser. Quando Deus dá o ser, não apenas não perde nada, mas diferentemente das nossas experiências de compartilhar conhecimento e amor, também não acrescenta nada a si mesmo. Resulta sim um gigantesco aumento, mas não a Deus. Mesmo com um imenso acréscimo em “iluminação”, o montante de luz fica o mesmo. Na criação, são as criaturas que são os grandes ganhadores. Mais seres, mas não mais ser.