Abusus non tollit usum. Corruptio optimi pessima. Exceptio probat regulam.
Esses três adágios latinos têm me ajudado a permanecer sensato, talvez mais do que as milhares de páginas de filosofia que eu li. Em resumo, eles me alertam a não renunciar o uso por causa do abuso; a não negligenciar a excelência por causa da sua frequente corrupção; e a não relativizar as regras, só porque as exceções são tão incômodas. O quão fácil a mente pode escorregar para dentro dessas armadilhas, observa-se com clareza para onde quer que se olhe, particularmente nessa era abusiva, corrupta e excepcional em que vivemos.
Em primeiro lugar, deixe-me traduzir – a necessidade disso é, em si, uma triste característica de uma cultura não mais familiarizada com suas línguas clássicas. ‘O abuso não exclui o uso’; ‘A corrupção do melhor é o pior’; e ‘A exceção prova a regra’.
O primeiro é muito simples. Continuamos a cortar nossas bisnagas com facas, a despeito dos muitos pescoços humanos que têm sido cortados com o mesmo instrumento afiado. O que seria da nossa cultura sem as facas? O princípio do adágio em questão é que apenas coisas intrinsecamente boas podem ser abusadas. Não se pode realmente abusar do lixo, nem destratar refugos. Mas se pode abusar de uma criança, e sabemos instintivamente a razão disso: porque uma criança é a coisa mais preciosa que o nosso triste mundo possui. Esquecemos essa verdade geral, porém, quando é a religião que está sendo abusada, e muitos logo deslizam para o argumento ilógico em favor de sua abolição. Políticos e policiais abusivos são um flagelo, mas um mundo sem política e polícia é um mundo em que não há coisa alguma para ordenar nem para defender. Então, da próxima vez que alguém mostrar indignação sobre o abuso disto ou daquilo, olhe logo para o valor da coisa abusada, e aproveite o ensejo para apreciar ainda mais a coisa cuja excelência faz possível um abuso tão chocante.
Parcialmente sobreposto ao primeiro princípio, temos o segundo. Como o abuso se aplica apenas a coisas boas, o abuso e a corrupção das melhores coisas produzem as piores, assim como acontece com as crianças – e, repito, com a religião. Não achamos revoltante quando vemos um mosquito esmagado, mas a carcaça de um cachorro já nos faz pular de horror e nojo. Quanto melhor o corpo, mais repelentes os seus restos. A Antiguidade Tardia estragou sua mente coletiva ao assistir a magnífica civilização romana decair lentamente e putrefazer-se, desafiando por séculos a historiadores e filósofos – de Agostinho a Gibbon – a entenderem porque uma das melhores sociedades humanas transformou-se numa das piores. Acredite você em anjos ou não, é significativo o fato de que a angelologia semítica diz que o mais elevado dos anjos caiu para se tornar o mais baixo; o nome inicialmente tão amável ‘Lucifer’ (o ‘portador da luz’) agora soa diabólico. Outro exemplo é o seguinte: os mais próximos e íntimos laços humanos são os de sangue, os sagrados vínculos familiares; contudo, os conflitos humanos mais sangrentos são as guerras civis e fratricidas. Da mesma forma, nenhum inimigo é tão feroz quanto um amigo que virou inimigo. Essa lista dos melhores tornando-se os piores vai longe.
O terceiro adágio é potencialmente o mais controverso, embora, na prática, pareça o mais óbvio. Sem entrar muito em argumentos filosóficos, ou até científicos, em que ele poderia ser questionado, penso estarmos justificados em pensar, pelo menos de saída, como ele funciona em nossos assuntos do dia-a-dia. A maioria das pessoas é destra, e o mundo está cheio de sinais dessa preponderância estatística – desde a produção de automóveis, construção de estradas e carteiras de escola, até a ordem das cordas nos violões e violinos, e – num contexto menos agradável – todas as formas de alusões ‘sinistras’. Ainda assim, damos ‘colheres de chá’ aos canhotos sempre que podemos. Afinal de contas, não são culpados por essa sua tendência. Contudo, estaríamos exagerando se insistíssemos que metade de todas as carteiras escolares fossem para canhotos. Claramente, o ‘mundo canhoto’ é uma exceção ao destro, e isso ressalta – ‘prova’ – a regra. Essa prova, contudo, não nos exige extirpar as exceções, nem bani-las a um gueto. Diz apenas que o mundo é muito mais interessante e belo, em parte, por não ser imperiosamente simétrico.
Enquanto houver temor de que a constatação de exceções constitua uma ameaça às regras, as leis da vida e do seu desenvolvimento, bem como as tendências naturais, as regras continuarão a ser encaradas como leis draconianas. Nossas mentes buscarão normas que não sofrem exceções, vendo isso como a única forma de honrar a natureza. Mas isso seria uma anomalia.
Até a ciência moderna – outrora orgulhosa de suas ‘leis da natureza’ de validade necessária e universal – está hoje em dia acostumada a admitir lidar com probabilidades estatísticas na maioria das vezes. Tais tendências e aproximações, na realidade, ganham mais destaque justamente por meio das exceções que lhes negam a universalidade.
Quando dirijo meu carro, tenho que desviar para a faixa errada, a fim de evitar atropelar um pedestre. Esse momento de comportamento excepcional simplesmente ressalta, com um toque dramático, o quão importante é – em 99% das vezes – permanecer na faixa correta (e, para os pedestres, manterem-se fora da rua). Gostaria de escoltar este princípio a alguns tópicos mais controversos, mas deixarei isso para outro dia.