A resposta curta é: não. Uma resposta algo mais longa, porém, dará um pouco de legitimidade àqueles que sejam, de início, seduzidos pela ideia. O Gênesis insiste que o mundo e tudo o que há nele não é divino, e que o fato de uma criatura se pensar divina é, na verdade, a fonte de todo o mal. Mas, a coisa não é tão simples assim.
O mesmo livro do Antigo Testamento ensinará, com igual autoridade, que fomos criados “à imagem e semelhança de Deus”. Portanto, já somos semelhantes a Deus de certa forma, ainda que também estritamente proibidos de buscar essa semelhança de outro modo. O consenso teológico entende a imagem de Deus em nós como sendo nosso ser pessoal e nossas faculdades espirituais (intelecto e vontade). O fruto proibido seria uma expropriação dos ‘direitos divinos’ de determinar o que é certo e errado (simbolizado pela árvore do conhecimento do bem e do mal). Mas neste ensaio quero considerar apenas a questão mais abstrata e metafísica, a saber: Como é possível o Absoluto (Deus), de forma alguma, coexistir com o Relativo (a criação)?
Duas soluções populares ao problema do Uno e do Muito – do divino e do criado – são o panteísmo e o monismo. O primeiro afirma que o universo já é divino, ou seja, que a única ‘realidade absoluta’ que pode existir é o cosmos mesmo na sua totalidade. Recordamos o credo de Carl Sagan, segundo o qual “o cosmos é tudo o que é, tudo o que era e tudo o que será”. Com apenas uma leve modulação conceitual, o monismo simplesmente proclama que tudo é irredutivelmente um, deixando a questão de Deus em parênteses. Embora ambos descartem a dualidade e pareçam defender a mesma coisa, há entre eles uma diferença sutil, porém crucial.
No panteísmo, o universo ganha um upgrade, seja por ser considerado idêntico a Deus (em algumas formas), ou uma dimensão d’ele (como em Espinosa, por exemplo). Por outras palavras, em vez de recorrer às sombras platônicas ou às mayas evanescentes, o panteísta proclama uma identificação cabal. No monismo, contudo, a ênfase é na unicidade, e é a multiplicidade na qual o universo se orgulha que é degradada a uma tênue aparência. O cosmos fica, no máximo, um carrossel fantasmagórico de indicadores, todos apontando para o Uno e em seguida desaparecendo; ou, na pior das hipóteses (mas, mais coerente do ponto de vista lógico), uma ilusão.
A doutrina da criação não sucumbe a qualquer dessas evasivas simplistas. Se Deus é nada mais do que o universo, ele vira um deus diminuído, e faríamos melhor em jogar fora nossos livros de orações e entoar ‘E=mc²’ como nosso único hino cósmico. Se continuarmos insistindo em chegar a qualquer ‘além’, acharemos mais satisfação no estudo de astrofísica, sem fantasias teológicas. Já possuímos meios racionais para desmistificar ilusões óticas do nosso mundo, mas a realidade dura e palpável do mundo continua soberana. Apesar de a aparência de água sobre o asfalto possa ser uma ilusão mesmo, as cataratas do Iguaçu não o são. Nossos materialistas estão certos de que este mundo é muito real para ser taxado de ilusão.
Entretanto, há uma outra abordagem da questão. Como sempre, as estrelas nos ajudam a entender as coisas elevadas. Estrelas sem planetas ainda assim brilham, mas aquelas com planetas não apenas brilham, mas também têm a sua luz refletida. Ora, a quantidade de energia luminosa não muda neste caso, mas sim a iluminação (em latim há até duas palavras: lux para a luz direta, e lumen para a luz refletida). Esta me parece a melhor analogia disponível para esclarecer como a criação pode ter aquilo que Tomás de Aquino chamou de novitas essendi (novidade do ser), sem, contudo, diminuir ou comprometer a infinidade do ser de Deus.
Como é com nosso sistema solar, onde há mais coisas iluminadas, mas nem por isso mais luz do que possuiria uma estrela do mesmo tamanho, mas sem planetas, assim também é com a criação: uma vez que existe o cosmos, há mais seres, mas não mais ser. Deus é, nas palavras de Tomás de Aquino, não mais um ser entre outros (nem o ‘Máximo’), e sim o Ser Mesmo Subsistente. É totalmente transcendente ao universo justamente por ser radicalmente imanente a ele como sua causa. Ele está no universo como Machado de Assis está nos seus romances, e não como qualquer protagonista ou parte do enredo, mas como causa transcendente dos protagonistas, do enredo e do romance todo – dentro dele por ser causal e soberanamente transcendente a ele. Aquilo que Cristo vai exigir dos seus seguidores, de ser “dentro do mundo, mas não do mundo”, se aplica metafisicamente à relação entre Deus e o universo.
Ora, compartilhar o ser é, de certa forma, como compartilhar o conhecimento ou o amor. Santo Agostinho ensina-nos que repartir coisas materiais é ter menos do que teríamos se não tivéssemos repartido; mas, ao compartilhar coisas espirituais, obtemos, paradoxalmente, ‘mais’ delas. Divide um bolo ou um saco de castanhas com alguém, e terminará com menos bolo e menos castanhas; mas divide o seu conhecimento ou o seu amor com alguém, e acabará com mais conhecimento e mais amor. Se isto é verdade acerca dessas realidades espirituais, quanto mais acerca da raiz de todo conhecimento e todo amor, que é o Ser mesmo.
Entretanto, temos de virar Agostinho um pouco de ponta-cabeça. Você pode não perder coisa alguma quando compartilha bens espirituais, mas no caso do Criador, há um bem que jaz além da distinção entre espiritual e material, cujo compartilhamento – mesmo se não lhe traz qualquer perda – também não lhe traz qualquer ‘ganho’. De novo, é simplesmente o ser. Quando Deus dá o ser, não apenas não perde nada, mas diferentemente das nossas experiências de compartilhar conhecimento e amor, também não acrescenta nada a si mesmo. Resulta sim um gigantesco aumento, mas não para Deus – só para a criatura. Mesmo com um imenso acréscimo em ‘iluminação’, o montante de luz fica o mesmo. Na criação, são as criaturas que são os grandes ganhadores. Mais seres, mas não mais ser.
er.