St. Justin Martyr

Pedagógico ou esotérico?

Há diferenças importantes entre uma filosofia, uma religião ou uma organização qualquer que se apresenta como “esotérica”, e uma que simplesmente apresenta uma ordem pedagógica na apropriação daquilo que oferece e ensina. Também no caso do indivíduo, existem situações de vida que exigem certa proteção, mas sem se tratar de algo stricto sensu “oculto”. Mas na maioria das institutições, uma tradição saudável proporciona suas riquezas pelo processo educacional de um currículo organizado, exigindo humildade do discípulo em começar – como em qualquer empreitada séria – com “pequenos passos”. Mesmo assim, o conteúdo ganhado por esses passos iniciais segue em sincronia com tudo aquilo que vem depois. A transmissão, nesses casos, requer proteção apenas por razões práticas e sociais, e não por causa de mistérios clandestinos destinados só a uma elite.

Uma tradição esotérica, em contrapartida, proporciona suas “riquezas” por um processo explicitamente iniciático; promete conhecimentos e poderes reservados, programaticamente, a uma elite. Nas tradições não esotéricas – e também na vida cotidiana – as verdades tendem a se desdobrar a partir de uma semente, ou como um embrião no seio materno – passo a passo, organicamente, rumo à maturidade. No esoterismo, a tendência é, em muitos casos, de apresentar o conhecimento inicial como uma necessidade pragmática apenas, sem conteúdo cognitivo autêntico. Pode-se tratar de “mitos”, ou até de mentiras explícitas, mas mentiras “úteis” no processo de aproximação às verdades ocultas. Consequentemente, em organizações esotéricas mostra-se amiúde um descompasso entre os ensinamentos e as práticas iniciais e tudo aquilo ao qual o iniciado será ultimamente conduzido.

Perante esse fenômeno bastante presente no mundo de hoje, é importante distinguir quatro sentidos legítimos de um “conhecimento reservado”:

1. O Pedagógico: Há o “conhecimento reservado” na ordem pedagógica de aprendizagem de qualquer matéria, sendo a reservação, simplesmente, o reconhecimento da necessidade de postergar elaborações mais complexas da matéria para as etapas avançadas do ensino (por exemplo, o iniciante na aritmética e até na álgebra não pode entender já o cálculo infinitesimal, que fica “reservado” aos cursos posteriores).

2. O Profissional: Existe outro conhecimento reservado, mas não por causa da sofisticação na elaboração da matéria, e sim por causa de uma vocação especial. O médico vai conhecer coisas sobre o corpo humano que só a sua prática médica exige e que a pessoa na rua acharia até perturbadoras. Há conhecimentos semelhantes reservados aos psiquiatras, aos advogados, aos clérigos e até aos bancários. É o famoso “sigilo profissional”.

3. O Progressivo (espiritual): Existem também, em qualquer vida espiritual seriamente conduzida, conhecimentos que só vêm quando a pessoa em questão chegasse a uma maturidade adequada. Falamos de uma via purgativa, via illuminativa via unitiva na vida interior. Durante uma etapa marcada pela purificação, não se manifestará, por definição, a plena iluminação; e mesmo após entrada na segunda via, a experiência da união ainda ficará bem na frente, reservada a um avanço mais profundo nas virtudes. Mas nada disso é reservado só para uma elite espiritual ou sapiencial; todo mundo é convidado a chegar até o topo.

4. O Privado: Também há conhecimentos pessoalmente privados, com tudo aquilo que pertence ao “foro interno” mas além dos conhecimentos reservados profissionalmente (2. em cima); são simplesmente conhecimentos que fazem parte da intimidade da pessoa humana, e.g. a vida íntima de um casal, “segredos” da família (problemas, doenças, até genealogia, etc.), e coisas meio banais mas importantes, como o direito de visitar um banheiro sozinho, ou de usar senhas e códigos para proteger informações pessoais.

Logo, nestas quatro modalidades pode existir um conhecimento apropriadamente reservado, devido às etapas progressivas na pedagogia, às vocações especiais nas funções das pessoas na sociedade, às dimensões ascendentes na vida espiritual, ou simplesmente às áreas da nossa vida pessoal que são íntimas, associadas aos direitos humanos, a um foro interno, ou a uma esfera de privacidade.

Infelizmente, essas distinções não sempre admitem de uma terminologia nítida. As palavras, como sempre, são flexíveis e nosso uso delas nem sempre preciso. Assim, em termos vernáculos, pode ser dito “esotérico” qualquer um desses conhecimentos reservados, pelo menos de um certo ponto de vista. A física nuclear e a mecânica quântica podem parecer “esotéricas” para quem tem pouca formação na física, os conhecimentos médicos do oncologista meu “esotéricos” ao paciente enfrentando o câncer pela primeira vez, e as intuições místicas das almas na via illuminativa, ou até unitiva, meio “esotéricas” para aqueles ainda lidando com as virtudes mais rudimentares.

Todavia, no uso rigoroso e historicamente documentado, o termo esotérico é, por sua vez, também “reservado”, a saber, seu uso se costuma limitar a conhecimentos de uma índole altamente restringida, e não só por pedagogia, vocação, estágio espiritual do conhecedor, ou simples privacidade. São reservados porque são vistos como instrumentos de poder (“knowledge is power“, Francis Bacon). São perigosos e por isso destinados apenas a uma elite definida por ritos e iniciações particulares. Além do mais, tais conhecimentos muitas vezes provém de uma origem duvidosa, até assombrosa. Saber dessa origem vai cair também no âmbito dos itens de cognição reservada.

Na interpretação das tradições ortodoxas – sejam abraâmicas ou asiáticas – existe desde as suas fundações a ideia de conhecimentos “roubados”, obtidos de forma indevida, desordenada. Por isso mesmo, eles se tornam danosos para a alma, gerando cognições descontextualizadas e quase sempre geradoras de soberba e auto-delusão. Eles produzem o que Carl Jung chamou de “sabedoria imerecida” (embora Jung mesmo não seja inocente dessas incursões).

É aí que está o subterfúgio característico do esoterismo. A periculosidade de tais conhecimentos não é exatamente que sejam falsos, mas paradoxalmente, justamente porque são verdadeiros. Mais corretamente, são verdadeiros, mas desordenados. Pura falsidade é fraca e mostra sua duplicidade rapidamente. Misturas de verdade e falsidade, no entanto, possuem mais vigor, devido à verdade pelo menos parcial. Por isso, elas têm bem mais longevidade.

Mas a espécie de conhecimento de que falo aqui é uma que consta total, ou quasi totalmente de verdades que sejam, em si, relativamente puras, até inocentes. O que falta não é tanto a verdade, quanto a ordem da verdade: a hierarquia apropriada, a perspectiva bem ajustada, o foco conveniente e, ao seu redor, o contexto oportuno. Verdades “esotéricas” são fora do contexto, “órfãs”, acessadas e absortas mentalmente sem a ambientação da totalidade da Verdade, de um lado, e do outro – e de longe mais perigosamente – da motivação sustentada pelas virtudes morais, e sobretudo, pelo amor. Esses conhecimentos fragmentados possuem, por assim dizer,  irregularidades nas suas extremidades, e um jeito meio desajeitado. Para manter sua autoridade, eles precisam de uma nuvem de mistério artificial. Em parte para esconder essa falta de conectividade com a verdade total, mas também para mascará-las, os esoteristas costumam chamá-las de “segredos”.

A maioria de tais conhecimentos esotéricos e iniciáticos fornecem insights sobre o mundo dito “sutil”, ou “psíquico”, a saber, a dimensão intermediária entre a esfera da materialidade grosseira visível e palpável e a esfera puramente imaterial do espírito. À medida que si virem para o mundo propriamente espiritual (ou até a espíritos, mas espíritos menos santos) é apenas para ganhar poder ou conhecimento adicional sobre o mundo sutil, e por meio deste, também conhecimento “reservado” sobre o mundo físico em que todos nós vivemos. Neste mundo físico, os efeitos de tais conhecimentos – que dão o poder de afetar a matéria – podem ser até percebidos. Não é toda mágica ou todo ocultismo que seja só fraude.

A desordem provém dessa preocupação com “forças”, “energias”, “auras”, “radiações”, etc., as quais realmente existem, mas, na ordem atual da providência, devem se subordinar totalmente ao mundo espiritual na sua forma mais madura. Isto é o mundo das virtudes em toda sua envergadura: humildade, prudência, justiça, temperança, fortaleza, fé, esperança e, sobretudo, amor. No mundo esotérico, a ênfase sobre tais virtudes – especialmente humildade e amor – mesmo se mencionadas e dadas algum reconhecimento, tipicamente caiem sob o domínio de um conhecimento prepotente. Tais valores podem até ser vistos como sinais de fraqueza e sentimentalidade. É no aumento do conhecimento segredo que os esforços se concentram.

Outro aspecto dessas cognições especiais é a tendência de identificar, com exatidão e definição, as forças do mal. É algo que poderia ser chamada de “demonologia secular”. Na visão cristã, na presente “economia” da salvação, só existem forças irremediavelmente malvadas no mundo dos anjos, mas não no mundo humano. Mesmo homens associados ou até consagrados a forças demoníacas nunca ficam permanentemente vinculados de forma que nem podem ser resgatados. O esoterista, em contrapartida, tem certeza que os grupos apontados pelos seus conhecimentos especiais são inimigos além de salvação. Os grupos humanos assim designados podem ser judeus, protestantes, católicos, negros, brancos, orientais, gays, comunistas, capitalistas, etc. Estes são só alguns dos grupos “demonizados”, no passado ou no presente, por atitudes esotéricas (sejam por sociedades secretas ou simplesmente por intelectuais sob a influência de um ou outro esoterismo). Uma visão madura, alimentada por uma antropologia filosófica inteligente (não ideológica) e uma teologia bíblica, verá a maldade humana como o vírus promíscuo que, de fato, é – uma doença que migra entre pessoas e grupos com certa imprevisibilidade.

Mas o cristianismo é totalmente livre dessas tendências “esotéricas”? Pode parecer que ele também obedece certos princípios desse gênero. Só por uma análise mais aprofundada, fica evidente que não é assim. Dois paralelos parciais, mas enfim enganosos, devem ser mencionados. 1) Nos primórdios do cristianismo, os fiéis às vezes praticaram o que se chama de “disciplina arcana”, ou seja, um silêncio deliberado sobre certos aspectos dos mistérios da fé. Fáceis mal-entendidos se apresentam em qualquer revelação que contém novidades, ou mesmo apenas manifestações novas de realidades velhas. Por força da natureza também “histórica” e sacramental da revelação cristã, este perigo assume proporções mais destacadas.

A Trindade, por exemplo, pode ser facilmente interpretada como politeísmo; a crença em um Pai e um Filho como algo que pressupõe atos sexuais em Deus; as festas de fraternidade (os ‘agapes’) entre “irmãos” e “irmãs” – como os primeiros cristãos se autodenominaram – podem ser entendidas como incestuosas; a Eucaristia pode assemelhar a um tipo de canibalismo, etc. Assim, especialmente durante épocas de perseguição, sem possibilidade de exposição circunstanciada dos artigos de fé, os fiéis foram aconselhados de não falar, explicitamente, sobre certos elementos da sua crença e prática. O motivo não foi por serem, a rigor, “segredos”, mas por serem inteligíveis apenas numa cultura mais aberta, quando catequese e teologia podem se desenvolver para contextualizar os detalhes da revelação e afastar mal-entendidos.

2) O segundo paralelo diz respeito a assim-chamado “apofatismo”. A palavra grega, apophase, significa, simplesmente, negação, mas passou a significar a negação de possibilidade de formulação em palavras de certas verdades mais sublimes. Dimensões “apofáticas” da fé seriam coisas que não admitem de descrição adequada, ou de tradução em nossa linguagem cotidiana. Um motivo legítimo seria, em certas religiões e correntes de mística em qualquer religião, de prevenir que as pessoas achem que já entendem, plenamente, um mistério simplesmente por possuir palavras que apontam a ele. É mais seguro contentar-se com a negação dos atributos, por exemplo, que Deus não tem, do que ousar a articular os atributos que, de fato, tem. Contudo, no cristianismo, há uma particularidade na noção mesma de revelação, a qual faz toda a diferença em relação a outras alegadas revelações. A revelação cristã, bíblica, é, desde o início, pessoal, e o que foi revelado é algo que uma realidade profundamente pessoal desvendou, livremente, da sua vida interior.

Isso já acontece, gradativamente, nas páginas do Antigo Testamento, mas no Novo Testamento a gente aponta mesmo a uma revelação consumada na Encarnação de uma Pessoa Divina em uma natureza humana. Portanto, a fé cristã enfatiza a realidade bem articulada da revelação em Jesus Cristo, que manifesta explícita e profundamente o mistério de Deus. Sem dúvida, a infinitude de Deus continua abrindo novas dimensões de si mesma – Deus fica, para nós, sempre o Deus ilimitado, imenso e sem medidas – mas a porta pessoal, em Cristo o Messias, abre insights e intimidade negadas àqueles que desconhecem essa Porta totalmente inédita.

Apesar de certa disciplina arcana e certo apofatismo terem um lugar legítimo no cristianismo, é apenas em estrita subordinação à revelação final e acessível em Cristo. Ele é o Verbo encarnado, e verbos existem para serem falados; este Verbo quer ser falado depois em confissões de fé e também na teologia, não apenas em experiências excepcionais de natureza “mística”. Mas isso não significa que as palavras sejam semanticamente onipotentes. No final das contas, há algo “indizível” não apenas em Deus, mas em absolutamente tudo, mesmo no detalhe mais banal da ordem criada. Todas as coisas participam, em certa medida, no mistério divino que as criou. Em si, o lado de indizibilidade vai crescendo à medida do aumento em entidade (plantas tem mais do que pedras, bichos mais do que plantas, homens mais do que bichos, anjos mais do que homens, e Deus, incomparavelmente, mais do que todos). Porém, a revelação em Cristo constitui uma exceção totalmente sui generis, enquanto foi o próprio Deus que se desvendou, revelando coisas conhecidas só a Deus mesmo – “coisas desconhecidas desde a criação do mundo”. (Matheus 13:35)

O que distingue as etapas no crescimento espiritual indicadas em cima – com o desdobramento progressivo de novas dimensões da fé cristã – em contraste com os graus de iniciação em grupos propriamente esotéricos, é o seguinte: no mundo cristão, o aumento de conhecimento ordenado orgânico é ligado inseparavelmente ao crescimento nas virtudes, e notadamente na caridade. O lema “ubi amor, ibi oculus” (onde existe o amor, existe também o olho [conhecimento]) é, para os seguidores de Cristo, o princípio de toda evolução espiritual. É o amor, e só o amor, que ordena o conhecimento, colocando seus elementos na perspectiva certa, uns em relação aos outros; sob foco apropriado, sem isolamento de partes em relação ao todo; e no contexto integral, que só está em condições de revelar o último sentido do conjunto dos conhecimentos.

No mundo esotérico prevalece o princípio “gnóstico”, ou seja, a supremacia de conhecimento, e um conhecimento que separa o cognoscente dos não-cognoscentes. Forma-se uma elite daqueles “que sabem”, um clube. Mas a igreja cristã nunca foi um clube. O conhecimento que vem do amor liga e vincula o cognoscente aos outros, visa comunhão e aquele transbordamento de verdade, bondade e beleza que só o amor pode causar.

 

 

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