St. Justin Martyr

Deste lado da glória (contra um equívoco eucarístico)

O nascimento do Cristianismo está, de modo irredutível, e – entre as religiões do mundo – de forma exclusiva, centrado em um evento. Trata-se, em primeiro lugar, não apenas de um ensinamento a ser aprendido, nem de um exemplo a ser seguido, tampouco de um preceito moral ao qual se deva aderir (várias outras religiões oferecer-lhe-ão essas coisas). Trata-se, antes de mais nada, de um acontecimento palpável, tanto estranho quanto maravilhoso. As primeiras gerações de pregadores dessa fé percorreram as imediações do Mediterrâneo como homens estupefatos ou drogados. Quase tartamudeando, eles proclamaram sua mensagem, apontando com mãos trêmulas para um lugar e um momento em que alguma coisa portentosa tinha acontecido. Para eles, foi algo que mudou o mundo para sempre.

Foi uma occorrência logicamente impossível mas existencialmente inegável, a saber: alguém tinha ressuscitado de entre os mortos – um evento que, quase por definição, ultrapassa nosso entendimento e desobedece, frontalmente, o senso comum. Uma inédita injustiça tinha se abatido sobre um homem santo, o qual foi cruelmente crucificado e morto; e a resposta dele, em vez de uma desaparição deste mundo (como fazem milhões dos mortos), foi antes uma explosão de Vida e a maior surpresa da história. Nem mesmo São Paulo o compreendeu. Porém, ele sabia muito bem que coisas acontecem que escapam ao nosso modo de pensar costumeiro. A Ressurreição foi uma dessas coisas.

Com o passar dos anos, enquanto aquele evento recuou-se mais e mais no passado, duas outras coisas aconteceram. Em primeiro lugar, as testemunhas oculares do Cristo Ressuscitado logo morreriam, e a partir de então, aquele evento foi testemunhado mais por bocas e ouvidos do que por olhos. Todavia, os olhos que vieram depois queriam ver, pelo menos, o mundo redecorado pelo novo evento, e os ouvidos queriam ouvir sons que vibrassem com a nova mensagem. Acima de tudo, as pessoas queriam ser salvaguardadas da nossa trágica tendência de esquecermos, mesmo de eventos monumentais.

Portanto, devagar, mas coerentemente, formas litúrgicas evoluíram, paramentos clericais surgiram, capelas e igrejas foram construidas, e uma explosão de arte e música cristãs começou a encher o mundo – tudo isso para nos lembrar de uma glória que certa vez refulgiu em um Homem cujo ano de nascimento virou a estaca zero do calendário. Das paredes das igrejas cobertas com ícones bizantinos no Oriente, até às torres góticas no Ocidente; desde os modos musicais quase sussurrados do canto gregoriano até às suntuosas harmonias da música barroca e romântica; desde a alta e refinada cultura cristã até aos souvenirs mais kitsch das romarias – nossos campos visuais se enchiam com uma luz nova e encantadora e os ouvidos foram invadidos por uma música totalmente inédita.

Para os cristãos Católicos e Ortodoxos, a Eucaristia – seja chamada de Missa ou de Liturgia Divina – é um evento repetível no tempo, mas concebido pela Providência para manter aquele Evento da plenitude do tempo bem ancorado em nosso mundo de areias movediças. Ela acontece todos os dias, por todo o mundo, e torna-se o mais espetacular show religioso da Terra quando o Papa celebra uma Missa na Praça de São Pedro. Até mesmo a mídia secular não pode resistir à sua magia, apesar de a imprensa muitas vezes meter os pés pelas mãos ao tentar achar um verbo que descreve o que acontece numa Missa.

É engraçado ler coisas como: “o Papa fez (ou teve, ou realizou, ou deu) uma Missa” – expressões que se pode ler em jornais internacionais –, denotando a desorientação dos narradores para descrever aquela “coisa” que os Católicos chamam de Missa, e como ela é feita. (Termo correto é que o papa ou o sacerdote celebra a Missa.) Obviamente, é bem mais do que uma comemoração, mais do que um sermão, mais do que um festival de música, mais do que um mero serviço. Como foi aquela realidade que a  liturgia renova, trata-se de um evento, um acontecimento. Algo ocorre quando você “vai à Missa”. Os verbos brigam entre si na tentativa de verbalizar o que sucede neste evento: “vai-se à Missa, assiste-se à Missa, tem-se uma Missa, ouve-se Missa…” Ou, no caso da recepção da hóstia: “tomamos a Comunhão, temos Comunhão, recebemos a Comunhão, comungamos, etc.” Nossos fracos verbos humanos tentam, em vão, ficar a par do Verbo Encarnado.

Para fazer justiça aos Protestantes, há que se dizer que os próprios Católicos e Ortodoxos tendem a gaguejar quando perguntados sobre os pormenores de seu famoso ritual. Várias distinções – com respeito a sacramento e sacrifício, tempo e eternidade, substância e acidente, e ainda outras precisões – teriam de ser levadas a cabo para dar conta da densidade do ritual eucarístico, o qual desafia as palavras e os conceitos cotidianos. 

Então, esta foi a primeira coisa que aconteceu depois do Grande Acontecimento: liturgia, arte, música – em resumo, uma remodelação visual e acústica do nosso mundo. A segunda coisa foi igualmente importante (de fato, as duas precisam uma da outra). Quando a primeira geração de cristãos febrilmente buscava colocar em palavras o que acabara de ocorrer, eles sem querer criaram uma nova categoria literária – o Evangelho –, e, adicionaram-se as Epístolas, os Atos e um Apocalipse à mistura – quatro gêneros praticamente vibrando com urgência.

Tudo isso evoluiu para um pequeno texto, dramático e insistente, que hoje chamamos do Novo Testamento (uma expressão, contudo, que os Evangelhos reservam, e não por acaso, para a narrativa da instituição da própria Eucaristia). É muito mais um conjunto de documentos para pregação do que uma obra literária para ser editada em um volume e colocada numa estante. Porém, virou o Livro dos Livros. Meditando sobre esses documentos e tomando parte nesse ritual misterioso – duas coisas inseperáveis na tradição -, o Mestre ordena às gerações subsequentes que os considerem de ponta a ponta. Foi assim para os discípulos de Emaús, a quem Cristo se revelou por meio das Escrituras e ao Partir do Pão. Logo em seguida, um novo modo de pensar crescia lenta e gradualmente, mas contemporaneamente com a difusão da nova arte e liturgia. Chamamos este novo discurso de teologia.

Gostaria de chamar a atenção para só um pormenor desses novos eventos litúrgicos e dessa nova reflexão teológica que emergiu dele. Cristãos não pertencentes às tradições Católica e Ortodoxa frequentemente se surpreendem com a insistência delas na presença real de Cristo – corpo, alma e divindade – sob as espécies eucarísticas. Na longa história da teologia cristã, há uma enorme quantidade de literatura polêmica sobre essa questão. Mas o que nos interessa aqui é bastante simples, capaz, talvez, de transcender às discordâncias confessionais. A maioria dos que creem na Ressurreição de Cristo aceitam que seu corpo exista agora – após sua Ascenção – de modo fundamentalmente diferente do de nossos atuais organismos, tão aflitos e pesados. Lemos sobre isso nos relatos evangélicos. Eles falam da aparência inusitada de Jesus depois da Ressurreição: passando através de portas fechadas, aparecendo e desaparecendo quase como um fantasma (sem falar da aparência refulgente de sua glória na Transfiguração).

A doutrina cristã em praticamente todas as suas articulações tradicionais concorda que Cristo ainda possui um corpo real, mas que a matéria desse corpo (e não apenas a alma) foi, como digamos,  “glorificada”. O que isto realmente significa ainda não temos condições de saber ao certo, até que, queira Deus, nós algum dia tomemos parte nisso. Contudo, já podemos depreender uma consequência disso tudo.

Quando alguém insiste que Jesus está realmente presente na Eucaristia, é àquela realidade misteriosa e gloriosa do corpo e sangue transfigurados que eles se referem. Isso não implica, todavia, que aquela presença é meramente espiritual, ou simbólica, ou metafórica, etc. É um corpo real (com moléculas e células), mas sob uma forma que já antecipa aquele estado ao qual todos nós somos chamados, graça após graça. Para aderir a uma crença tradicional na Presença Real, não se precisa imaginar um corpo masculino adulto, tais como aqueles que estão à nossa volta, de algum modo “milagroso” compactado no espaço de uma pequena hóstia ou de um cálice de vinho. É um mistério da fé, não uma absurdidade da geometria.

O modo de existência do corpo glorificado de Cristo já é uma prefiguração gloriosa da transfiguração final do universo material, pressagiando o tipo de “espaço” no qual a Nova Jerusalém descerá dos céus. O livro da Apocalipse diz que não haverá templo na cidade, “pois o Senhor Deus e o Cordeiro são o seu templo” (21, 22). Lá, será Deus que conterá toda a criação, ao passo que aqui é a criação, em seus templos e liturgias, que o contém a ele – verdadeira, porém imperfeitamente. Em nosso universo “propedêutico”, ele achou por bem colocar a sua misteriosa e glorificada presença em uma forma de matéria destinada a entrar nos templos precários de nossos corpos humanos: a comida e a bebida. Aí, dentro de nós, o que está contido (Cristo) cresce até o ponto de conter, paradoxalmente, o seu próprio recipiente (nós). É a grande inversão do centro e da periferia prefigurada no cosmos de Dante – onde o foco da perdição e purificação terrestres subitamente dá lugar ao centro converso da divina essência no Paraíso. O mundo é virado do avesso e de ponta-cabeça. Algo semelhante acontece na Comunhão.

A graça é apenas a glória selada, e a sua propagação pela terra, por meio da oração e dos Sacramentos, é candidamente revolucionária. Onde quer que a graça seja silenciosamente plantada, um dia a glória retumbante florescerá luminosa. Se a maioria dos cristãos do mundo atribui tão grande importância à Eucaristia, é porque eles vêem-na como a estratégia pela qual o Paraíso está preparando para o seu cerco final. Contra os planos escravizadores deste mundo, sagradas bombas-relógio, por assim dizer, estão sendo implantadas nos corações humanos e nos tabernáculos das igrejas, por todo o nosso conturbado mundo. E há aqui um maravilhoso bônus que deveria alegrar o coração. Os santos dizem-nos que um dia, em estado de glória, quando olharmos para trás, os enigmas de nossa louca história humana, e de todo sofrimento a até do assombroso flegelo da morte, finalmente serão desvendados. Ninguém vai se estranhar mais sobre o mistério da Eucaristia. “Naquele dia, não me perguntareis mais coisa alguma” (Jo 16, 23).

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