Com frequência, quando se ouve falar do mundo espiritual (ou do mundo dos espíritos), dois erros simples, mas insidiosos, caem em nossa imaginação. Se eles se fixam, afastam-nos a anos-luz longe de uma ideia adequada acerca do que estamos falando. Nosso mundo de matéria, em todas as suas formas – grosseiras e sutis – contém muito do que é pesado, opaco e frio. Embora haja muita massa e energia sendo lançadas por aí, quando pensamos em matéria, tendemos a imaginar um tijolo, um punhado de terra, ou uma montanha. Portanto, quando formamos uma imagem do mundo imaterial, é compreensível (e não de todo incorreto) que o suponhamos luminoso, translúcido, diáfano.
Nenhum problema quanto a isso, desde que nós reconheçamos aqui o uso de linguagem metafórica. Mas, começamos a incorrer em erro ao presumirmos que o mundo espiritual é, por isso, evanescente, rarefeito, menos substancial, e – acima de tudo – homogêneo e radicalmente simples. A verdade é, no entanto, justamente o contrário.
Quando pensamos em algo “leve”, somos levados a pensar também em algo gasoso, difuso, tênue, até nebuloso. Mas nenhum desses adjetivos aplica-se, sequer remotamente, às realidades espirituais. Tudo o que vemos e tocamos no mundo material, e que parece ser tão robustamente real, denso e presente, é apenas uma manifestação remota e material de uma ideia, um arquétipo ou uma forma espiritual – na verdade, intelectual – na mente de Deus. Como arquétipos, existiam antes da sua presença temporal aqui embaixo. Podemos até afirmar que seja mais robustamente real, denso e presente, em sua matriz transcendente, do que quaisquer objetos ou fenômenos que atualmente estão aqui, no cosmo físico. De certa forma, estão aqui só “de passagem”.
Pois bem, após mostrar minhas cartas platônicas, deixe-me jogar uma mão aristotélica. As coisas físicas que nos cercam – incluindo nós próprios – não são apenas sombras daqueles protótipos na mente divina. Participam não só na forma deles mas também na sua “solidez”. As formas platônicas na mente de Deus já possuem uma força ontológica em si, mas quando a verdade bíblica sobre a Criação é levada plenamente em conta, as substâncias e acidentes no mundo adquirem robustez. Recebem um significado muito maior do que o permitido por versões exageradamente transcendentes do platonismo.
É por isso que a teologia cristã, após uma longa lua de mel com Platão, finalmente casou suas verdades mais profundas sobre a Criação e a Encarnação com Aristóteles. Mas não para banir Platão. No final das contas, esses dois luminares – Platão e Aristóteles – têm posições inegavelmente proeminentes no firmamento cristão. Tentativas de diminuir qualquer um deles inevitavelmente termina por obscurecer os vitrais da verdade revelada.
Contudo, o que defendo aqui é que há uma correlação direta entre a riqueza e complexidade do cosmos, por um lado – e falo aqui sobretudo do mundo terrestre, que é incomparavelmente mais rico e diverso do que o mundo astral em cima -, e a riqueza e complexidade do mundo espiritual que está para além daquele, por outro. E mais: dado que o nosso universo presente é apenas uma de infinitas possibilidades, o armazém divino de projetos arquetípicos tem de exceder numa medida infinita este cosmos particular. Mesmo que as estatísticas correntes digam que o número de galáxias deste universo chega, pelo menos, a uns dois trilhões, todo esse mega-espaço é de fato muito pequeno em comparação com o possível; mais ainda, ele é incomensuravelmente diminuto quando colocado ao lada de todas as Ideias, todas as Formas, todos os mundos possíveis que jazem – arquivadas por assim dizer – no pensamento criativo do Logos.
Mas, fiquemos por enquanto com a realidade criada atual. O mundo espiritual criado é, de acordo com as crenças abraâmicas, não apenas um grande reservatório de modelos ontológicos que saem dos infinitos recursos do Todo-Poderoso. Não é somente um conjunto de paradigmas estáveis para as mutáveis coisas materiais ocupando o espaço e o tempo. Esse mundo espiritual está acima de tudo preenchido por aquela categoria soberana de realidade que exibe, de longe, a mais densa e intensa consistência ontológica de todas: é um mundo de pessoas.
Pessoas são ontologicamente densas e operacionalmente intensas. Expressado em termos menos rebuscados, elas realmente são – plena e e solidamente – reais, e quando agem, grandes coisas acontecem. O mundo espiritual consiste, principalmente, não em coisas, forças, vapores ou atmosferas, e sim em milhões e milhões de pessoas. Imagine as populações da Cidade do México e de São Paulo juntas, circundando você por todos os lados: à esquerda, à direita, em frente, atrás, acima e abaixo; se conseguir imaginar isso na forma de anjos desincorporados, terá uma ideia.
E, voltando para as nossas observações iniciais, nada é menos homogêneo do que uma multidão de sujeitos e agentes inteligentes, pois cada um é, em si, um mini-mundo em pessoa. Portanto, apenas em termos de ser, o mundo espiritual é incomparavelmente mais real do que qualquer universo de astros termonucleares e difusa poeira estelar, não importa o quão grandes sejam (ver meu post: Uma vacuidade descomunal).
Esse é apenas o primeiro erro sobre o espiritual. Repetindo, a realidade espiritual criada não é, de forma alguma, ontologicamente homogênea – longe disso. Mas, o outro erro é ainda mais difundido, e na verdade supera o primeiro em traiçoeiras confusões. Provavelmente emanando – o trocadilho é intencional – dos antigos neoplatônicos, e certamente de velhas fontes gnósticas e maniqueístas, vem a ideia de que “espiritual” é de algum modo sinônimo de “bom”. Quanto mais espiritualizado – sugere esse erro – mais moralmente correto e santo. Por sua vez, o mal parece inevitavelmente atolado na matéria viscosa, opaca e pesada que mencionamos antes. E isso se diz, de forma enfática, em respeito àquela versão mais carregada da matéria: nossa querida carne.
Bem, erramos de novo. De acordo com as principais tradições religiosas – e não muito atrás delas, a maioria dos sistemas éticos do mundo –, a fonte e o ápice do mal estão não na carne, mas no espírito. Até na estória tradicional de Adão e Eva – independentemente de ser interpretada literal ou alegoricamente – não foi algum mau comportamento sexual que os levou a uma encrenca com Deus, mas uma escolha da vontade livre e intelectualmente informada. E mesmo antes disso – de acordo com a teologia cristã – o pecado inaugural, dentro da realidade criada por Deus, não foi cometido por diabinhos tarados, mas por espíritos puros, os anjos. O nome do seu delito supremo é orgulho. Que os orgulhosos humanos se encontram, após sua queda, particularmente vulneráveis ao pecado carnal, é uma consequência, e não uma causa. Viramos tarados porque fomos soberbos.
(Menciono só de passagem um erro colateral, muito difundido hoje, especialmente em círculos Nova Era, e também entre ocultistas. É o erro de identificar o espiritual com aquilo que, de fato, é apenas o “sutil” no mundo material. Já conhecemos essa dimensão material em nossos sonhos noturnos, e em tantas visões dos parapsíquicos [a não falar das alucinações dos usuários de agentes psicotrópicos]. Mas essa confusão mereceria uma discussão separada.)
A noção de que o espiritual é só doçura e luz, e de que as pessoas que com ele comungam flutuam em nuvens de unidade rarefeita e com o perfume de santidade em suas narinas, é uma miragem. A vida verdadeiramente espiritual é – especialmente na tradição cristã – uma vida sólida e disciplinada, às vezes dura e sempre diferenciada. Santos são abarrotados com realidade, não leves com ilusões.
O que podemos concluir, pois, sobre o mundo espiritual? O seguinte: que ele não é apenas ontologicamente heterogêneo, mas também moralmente diversificado. Se você deseja se conectar a uma “espiritualidade”, cuidado com a escolha da porta de entrada, pois há legiões! Podem existir atrás dessas portas, de fato, vastas paisagens de luz e amor, mas em regiões não menos “espirituais” achará mundos assustadores de um mal indizível. Busque sua porta com cuidado. Se alguém sugerir para você que ele seja a ‘porta’, verifique primeiro se este suposto mestre tivesse a coragem de sofrer uma Paixão e de dar a sua vida para você.