Um refrão comumente escutado hoje em dia por aqueles que relutam em sucumbir inteiramente ao secularismo, e tentam manter uma porta aberta à transcendência, mas avessos a instituições religiosas corruptas e calcificadas, é: “Eu sou uma pessoa espiritual, mas não religiosa.” Quando questionados sobre o conteúdo dessa espiritualidade – dificilmente se pode afirmar isso sem algumas convicções de fundo –, eles responderão mais ou menos o seguinte: 1) eu acredito em uma ‘força superior’ – chame-a de Deus, se quiser; 2) na última análise, todos nós somos um, e eu gostaria de me sintonizar com essa unidade – chame isso de ‘amor’, se preferir; 3) encontrei vias comprovadas de comunhão com essa força superior – chame isso de oração ou meditação, se gostar; 4) todas as religiões são basicamente iguais, e a espiritualidade que eu encontrei constitui a sua realidade interna; o resto é só ‘decoração de vitrine’. Em suma, esses buscadores espirituais concluem que, se você já descascou a banana, é melhor jogar a casca fora de uma vez. É difícil negar que isso soa, de cara, convincente.
Testemunhamos hoje um amplo espectro de variações desse tipo de atitude, desde a opção mais simples e pessoal de se manter distante da religião organizada, em favor da própria espiritualidade privada (com crenças meio flexíveis, e com alguma relutância em discutir os pormenores delas e em prega-las aos sete ventos – afinal, “são privadas”), até crenças universalistas alardeadas publicamente. Encontramos gurus convencidos de ter chegado a uma revelação perene, a uma jardim de verdade escondida. Podem convidar todo mundo, com ou sem convicção religiosa para participarem de retiros de fim de semana e workshops. Assim, ou por livros que divulgam a mensagem, lhes darão acesso às próprias experiências espirituais extrassensoriais ou preternaturais. Tudo isso com frequência é empacotado em técnicas tomadas emprestadas a várias tradições (principalmente orientais), ou feito sob medida por colaborações especiais entre práticas antigas e a moderna neurociência.
O bufê oferecido é bastante extenso, mas a mensagem é, no fundo, a mesma: o isolamento do essencial e a marginalização e relativização do secundário. Os gurus deste evangelho podem até recomendar uma ou outra tradição religiosa externa, mas quase sempre na qualidade de um adjunto cultural (um ‘meio útil’ entre tantos outros, chamado de upaya na Índia); o que importa é que se apreende a essência subjacente e se reconhecem todas as formas e instituições religiosas, em última análise, como secundárias e dispensáveis.
De novo, tudo isso pode soar bastante plausível. Mas há problemas. Em primeiro lugar, eu perguntaria se esse esquema de coisas é operativo em outras áreas importantes da vida e da cultura. Caso negativo, por que na religião deveria ser diferente? Ou seja, essa suposta oposição entre o ‘essencial’ e o ‘adjunto’ funciona em outras dimensões de nossa experiência? Vamos considerar alguns exemplos.
Comecemos primeiro com o corpo. De que eu preciso absolutamente para viver e sobreviver? Na verdade, cabeça e tronco são suficientes em larga medida, e mesmo os olhos e as orelhas não são estritamente obrigatórios para que o organismo funcione. Membros e sentidos superiores podem ser dispensados e mesmo assim o corpo continuará vivo e respirando. E, apesar de esses casos existirem, e nós fazermos o melhor para pessoas assim lidarem com sua deficiência e valorizarem a sua dignidade humana, ninguém finge que seja desejável, digamos assim, ‘restringir-se ao essencial’ em termos de nossa existência corporal. Aquilo que não pertence necessariamente à essência do corpo pertence sim à sua integridade. E esta última existe por causa da primeira. Nossos membros e os sentidos mais elevados estão no serviço da sede dos nossos órgãos vitais (tronco e cabeça), os quais, por sua vez, dão a aquelas capacidades ‘secundárias’ a possibilidade de expandir e explorar. A separação das duas esferas é sempre vivida como violação e amputação.
Em seguida, consideremos nossas necessidades corporais por comida, vestuário, moradia, combustível e transporte. O ‘essencial’ aqui seria que os bens materiais simplesmente circulassem entre nós, fornecendo a cada um o que precisa, no momento certo, e numa medida que permitiria a todos participarem da riqueza de forma equitativa. Sonhos utópicos das mais variadas linhas – fascistas, comunistas, ou até de um capitalismo desregrado – oferecem vislumbres saudosos desse Shangri-La. Contudo, os adultos entre nós suspirarão e admitirão que a história nos tem mostrado, repetidas vezes, que não se pode manter os bens em circulação no longo prazo sem algum tipo de moeda, sistema de mercado, lojas, bancos e até mesmo algum grau de controle governamental.
Na ordem política, igualmente, o ‘essencial’ seria para nós vivermos em harmonia, lado a lado, portas destrancadas, solucionando todas as questões comunitárias por meio de festivos referendos (com aprovação unânime e espontânea); em suma, vivendo numa Pleasantville de sorrisos fáceis, mas superficiais. Novamente, franzimos nossos cenhos e admitimos que, fora muito poucos e curtos experimentos comunitários, apenas chegamos perto da paz e prosperidade por meio da ação de algum tipo de poder soberano, de alguma burocracia, e ainda por cima alguns soldados e policiais. Essas coisas podem não ser necessárias no Paraíso, mas todos os ‘paraísos’, até agora ensaiados nesta terra, têm se transformado rapidamente em infernos. A única estratégia que deu certo é a seguinte: a minimização dos males predizíveis através de ‘checks and balances‘, revisão judicial, subsidiariedade, limites de mandados e outros freios aos nossos apetites facilmente desviados. Para preservarmos um mínimo de espontaneidade na natureza, só a criação de boas instituições mostrou-se eficaz.
Acho que o leitor pode ver onde quero chegar. Como nossos membros e sentidos superiores emergem de nosso organismo embrionário, servem-no e o protegem, e o levam às suas mais promissoras aventuras; e como nossas instituições econômicas emergem de nossa necessidade por bens e dessa forma servem a seu conseguimento; e assim como nossas instituições políticas emergem de nossa necessidade de paz e ordem e, por sua vez, atendem a essa necessidade; por que a relação entre espiritualidade e religião seria diferente?
Tanto as instituições econômicas quanto as políticas, sendo realidades vivas, crescem; e tudo o que cresce, tende, com o passar do tempo, a crescer demais, de modo que serão necessárias podas e reformas periódicas. Só assim as coisas conseguem ficar colimadas aos seus propósitos originais. As grandes religiões começam com uma grande espiritualidade, com um encontro especial de alguém com uma realidade transcendente (deixo para uma outra postagem falar das diversas possíveis partes da realidade espiritual e das implicações disso para a diferenciação entre as religiões – ver Filosofia da Religião). Isso engendrou uma interação humana complexa com essa realidade, sob a forma de tradições sapienciais e sistemas de crenças para a mente; guias morais para a vontade; e rituais e liturgias para nossos corpos. As instituições geradas por uma espiritualidade original crescerão, e às vezes crescerão excessivamente, e – assim como em suas congêneres econômicas e políticas – também precisarão de podas e reformas.
Em resumo, longe de ser alheia ou oposta à espiritualidade, a religião é a geração e preservação dela, sua raison d’être; a religião é, no seu melhor, o rebento natural e o prolongamento da espiritualidade testada. Durante milênios, nada além dela conseguiu protegê-la e guiá-la. As suas instituições podem ser tão enfadonhas e entediantes como as transações financeiras na vida econômica, ou as discussões parlamentares na vida política; no entanto, sem tudo isso, os bens param de circular, a ordem pública entra em colapso, e a chama da espiritualidade se apaga. A espiritualidade sem a religião pode até funcionar para uns poucos, mas não para todos; e mesmo para aqueles poucos, funcionará apenas por algum tempo, e mais cedo que mais tarde vai perder a sua forma e achatar-se em suspiros vazios. Enfim, espiritualidade sem religião nunca erguerá uma civilização. A religião, não obstante todos os seus excessos e corrupções, não apenas tem sido um essencial pré-requisito para a civilização. Ela é, comprovadamente, a sua única causa documentável.