No outono de 2013, passei uma noite na Cidade do Panamá, a caminho de Massachusetts, onde ia passar uma licença sabática. Tais pausas dividem um suplício aéreo de doze horas em dois voos mais suportáveis de seis horas. Apesar de um conhecido de Brasília ter sido recentemente atacado a pauladas nas ruas de Panamá e ter passado meses em um hospital se recuperando, ainda assim decidi pernoitar lá. Na manhã seguinte, ganhei as ruas para esticar as pernas antes de re-embarcar no grande pássaro metálico. E, durante minha caminhada, topei com Balboa.
Vasco Núñez de Balboa foi um dos mais admiráveis exploradores espanhóis do início do século XVI. Pode-se ler a sua história na Wikipedia. Ele é famoso nas narrativas eurocêntricas como o primeiro europeu a pôr os olhos no ‘Mar del Sur’ (o mar do sul, nosso Pacífico), como ele batizou a enorme extensão de água situada ao sul de seu ponto de observação numa colina panamenha. O fato deste Mar do Sul ter se revelado como, de longe, o maior corpo de água do mundo me deu ocasião para realizar meu próprio batismo, mas não de um mar, e sim de uma ideia.
Após admirar a postura algo bombástica da estátua, inclinei-me para ler as inscrições. A data me deu um susto: ele esteve lá no outono de 1513, exatamente 500 anos antes do momento no qual eu me postava diante de sua figura. Pensei comigo: isto é importante, preciso prestar atenção. Ocasionalmente, uma convergência de fatores acidentais configura uma metáfora cheia de lições. Essa era uma delas.
Aquele espanhol, exatamente meio milênio antes, abriu seus olhos e viu algo que colocou todos os seus pressupostos sobre a realidade num novo e imensurável contexto. O pobre conquistador seria posteriormente enredado em conflitos coloniais locais e executado, talvez injustamente, sem jamais ter levado a sua visão de volta à Europa. De qualquer modo, os europeus iriam ouvir falar do novo oceano. Mas duvido que até hoje tenhamos aprendido a lição.
Para mim, viver filosoficamente significa estar sempre a postos para o próximo ‘momento Balboa’. Algo tão grande como o Oceano Pacífico pode estar nos aguardando logo após os últimos retoques à nossa mais recente interpretação da realidade. Tenho pouca simpatia por aqueles cuja visão de mundo, ou religião, já pintou os últimos pormenores e respondeu as últimas questões, impedindo qualquer enriquecimento de sua visão do universo. Aristóteles e Tomás de Aquino – meus heróis intelectuais – mantiveram seus horizontes programaticamente abertos ao infinito. Recusaram-se a impor critérios arbitrários ao que a realidade pode ser ou fazer. Para eles, não é a ‘história’, nem a ‘linguagem’, nem a ‘lógica’, nem mesmo a ‘experiência’ que deve em última instância medir a realidade do real, mas antes o ser.
O ser – implicitamente para Aristóteles e explicitamente para Tomás – é, nos seus supremos patamares, pessoal, e isso porque pessoas são a suprema realização do que pode ser. Elas ficam abertas, por definição, a literalmente tudo. E pessoas manifestam essa abertura porque são tanto intelectuais quanto volitivas, o que significa que são tanto – em última análise – coerentes quanto surpreendentes. E qualquer coisa que seja, ou que possa ser, não será em princípio excluída – ao menos como uma possibilidade remota – num mundo criado por Aquele que é o Ser em si. Comparado às possibilidades d’Ele, o Pacífico é apenas uma poça d’água.