St. Justin Martyr

Jesus é simpático?

O ‘Jesus’ higienizado e açucarado que vemos sorrindo languidamente para nós em muitas pinturas piedosas é, na verdade, uma produção recente. É tão moderno quanto o ‘Marlboro Man’ (embora, provavelmente, o cowboy fumante se prestasse a ser uma representação mais fiel do Senhor).

Não nomearei aqui as pinturas mais famosas, pois algumas se relacionam a legítimas devoções, e minha intenção não é intimidar as pessoas simples com pretensões da ‘alta cultura’, muito menos escarnecer do gosto popular. Todavia, penso que o Verbo Encarnado merece uma remodelação mais fiel ao Evangelho, se queremos remediar alguns problemas sérios no imaginário popular a respeito de coisas divinas.

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Não temos fotos do Século I, nem alguém se importou em nos fornecer, no Novo Testamento, uma descrição física detalhada de Jesus. Os místicos e aqueles que recebem revelações privadas oferecerão prontamente suas contribuições, mas – conquanto estas não devam ser necessariamente contestadas –, prefiro voltar-me para as palavras do próprio Cristo, e depois para o único candidato plausível a um retrato visual.

O que quer que se pense do Sudário de Turim, quando eu ponho meus olhos sobre aquele augusto negativo que revela a face de um homem morto, plasmada quase espectralmente sobre o pano – a qual, ainda que não esteja olhando para nós, força-nos a olhar para ela –, eu vejo uma face da qual as palavras documentadas de Jesus bem que poderiam ter emergido. Mas, tentar botar essas palavras na boca do Jesus açucarado, manso e suave, que frequentemente encontramos na arte moderna, seria como dublar a delicada face de Julie Andrews, em A Noviça Rebelde, com a voz de um Arnold Schwarzenegger.

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Cristo era um homem. E, correndo o risco de soar mundano demais, ele era um homem com ‘H’ maiúsculo. Quando leio suas palavras e considero o Sudário, penso no seguinte: ele tinha talvez 1,80m; era esbelto, mas não magro; moreno, mas nem branco nem preto; dono de uma presença mais centrípeta do que centrífuga – e com isso quero dizer que, na sua presença, ele não ‘inundava’ um salão ao entrar (como gostam de fazer as celebridades ‘carismáticas’ de hoje). Contudo, se você porventura deitasse os olhos sobre ele, sentir-se-ia de coração compelido a responder – afirmativa ou negativamente – a uma puxada inexplicável de um outro mundo.

“(…) n’Ele habita corporalmente toda a plenitude da divindade”, lembra-nos São Paulo em sua Epístola aos Colossenses (2, 9). “Porque Deus que disse: ‘Das trevas brilhe a luz’, é também aquele que fez brilhar a sua luz em nossos corações, para que irradiássemos o conhecimento do esplendor de Deus, que se reflete na face de Cristo.” (2 Cor. 4, 6). São João pode ter recostado sua cabeça no peito do Senhor na Última Ceia, mas a cabeça do João que viu o Mestre glorificado na abertura do Apocalipse, ia cair por terra: “Ao vê-lo, caí como morto aos seus pés. (…)” (1, 17).

De fato, é quase impossível imaginar como seria estar lá, na presença de Jesus. Os apóstolos relatam mais perplexidade do que prazer em sua presença, e devem ter pensado muito em fugir do seu estranho comportamento (o que, no final das contas, eles acabaram fazendo, com exceção de João). A Igreja Católica canoniza centenas de santos basicamente para nos fornecer visões multifacetadas de uma santidade avassaladora. Ela nos arremessaria para longe, ou nos cegaria, se todas as suas facetas fossem concentradas num único ponto. “O homem não me poderia ver e continuar a viver” (Ex. 33, 20), alerta-nos Deus no Antigo Testamento. No burocrático e prolongado processo de elevar alguém à categoria dos santos reconhecidos – desde o ‘servo de Deus’, ao ‘venerável’, ao ‘bem-aventurado’ e finalmente ao ‘santo’ – o pobre candidato é examinado de uma forma que mesmo a política eleitoral norte-americana acharia fora do normal.

Todos os cantos e meandros de um possível pecado são desvendados com um holofote impiedoso. Entretanto, na longa lista de vícios desqualificantes, um que nos dias de hoje colocaríamos no topo de nossa lista não seria encontrado lá de jeito nenhum. Nenhum advocatus diaboli (o promotor que a Igreja, antigamente, encarregou de descobrir toda a sujeira do candidato) jamais perguntaria, “Mas, ele era simpático?” E certamente ninguém jamais comentou sobre Jesus – após testemunhar um milagre, ou ouvir um sermão, ou sentir-se perplexo com sua excentricidade – o seguinte: “sabe, o que quer se diga sobre ele, é um rapaz realmente simpático”. Assim como poderia também ser o caso na presença de muitos dos santos, você pensaria duas vezes antes de oferecer dividir com ele a sua cabine de trem.

Proponho uma nova onda de iconoclastia seletiva, com queimas públicas das pinturas afeminadas de Jesus, ou – no caso dos anjos – desenhos de bebês gordinhos, ou, mulheres untuosas vestindo roupões de banho. Com todo o respeito aos melhores espécimes da arte ocidental – de Giotto a Chagall – nós, cristãos latinos, faríamos muito bem em dar um longo passeio por uma galeria de ícones ortodoxos orientais (digamos, na Galeria Tretyakov, em Moscou, ou no Mosteiro de Santa Catarina, no Sinai). Lá contemplamos um Jesus masculino, régio e um pouco inquietante – e cercado de uma plêiade de ajudantes celestiais que parecem quase intimidadores.

Certamente não precisamos nos envergonhar de antropomorfizar o Filho de Deus, uma vez que Deus mesmo se tornou homem. Mas, prestemos atenção às pinceladas mais robustas do divino artesão. Cristo foi tudo menos de um homem legal e simpático, um rapaz de seu tempo, ou um cuidadoso estrategista, que pesava cada palavra e ato, de modo a não ofender. A arte sempre ficará aquém do ideal, mas ela deveria ser nobre e sugestiva da verdadeira transcendência. Quanto aos retratos pálidos, em tons pastéis – às chamas com eles! Claro, estou brincando… mas só um pouquinho.

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https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Icons_in_the_Tretyakov_Gallery

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