Quando eu era um garoto de nove anos, sendo criado em Kansas, certa vez fui chamado – com os outros pestinhas do bairro – a correr para a casa do meu melhor amigo, a fim de escutar um milagre acústico. Ele tinha acabado de ganhar um rádio de ondas curtas de aniversário e, logo de cara, tinha captado um sinal extraterrestre tão bizarro, que ele chamou imediatamente todos os seus coleguinhas a se maravilharem com ele. Eu fui o primeiro a chegar, e logo em seguida se teria visto uma tropa de garotinhos, todos boquiabertos, ouvindo aquele ruído alienígena. Não podíamos acreditar no que estávamos ouvindo. Quando ficou claro que se tratava de uma voz humana que produzia aqueles fonemas de outro mundo, longe de a coisa nos parecer mais familiar, pareceu-nos mais estranha ainda. Hoje, relembrando esse episódio, é difícil crer que estávamos simplesmente ouvindo uma emissora de rádio do México, e que aquele idioma extragaláctico que nos maravilhava era nada mais do que a língua espanhola.
Isso mostra o quão longe eu estava das línguas estrangeiras, quando criança. Sem mérito meu, as circunstâncias da minha vida iam mudar isso tudo. Mais de quatro décadas depois, estou lendo livros em sete línguas, e falando três ou quatro bastante bem, o que é um feito atípico para um garoto do Kansas. Mas não foi fácil chegar aqui, nem tão desejável em si; foram circunstâncias da minha vida e vocação, e nenhum projeto cosmopolita da minha parte. Admito cair no pecado da inveja quando encontro pessoas da Holanda, ou mesmo dos Bálcãs ou da Índia, as quais cresceram falando pelo menos duas línguas. Eu comecei a aprender idiomas – para valer – só quando já tinha vinte e poucos anos e, conquanto não fosse impossível, foi incomparavelmente mais árduo do que com pessoas que começaram como crianças ou adolescentes. Aqueles que passam as primeiras duas décadas da vida com duas línguas do mundo (ou mais) já dançando alegremente em sua única língua de carne, tem uma enorme vantagem. Minha língua já foi endurecida com inglês com 21 anos de idade.
Tendo eu vivido, ao longo desses quase cinquenta anos, em países onde minha língua nativa não era falada – quase um ano na Bélgica e França, três anos na Áustria e Alemanha, cinco anos na Itália, oito anos em Portugal e agora 30 anos no Brasil (eu disse 30?) – posso dizer que sei alguma coisa sobre línguas estrangeiras. Porém, minha competência não vem de um ponto de vista erudito – de uma ‘torre de marfim’ -, mas por trabalho de campo (quase falei ‘trabalho forçado’). Meu sistema nervoso e minhas vísceras guardam as cicatrizes de batalha de décadas de entender mal, e de ser mal-entendido por meus anfitriões, sem entender suas piadas e os ofendendo com as minhas. O mais desafiante era de ter de passar ao largo de milhares e milhares de coisas, processos e eventos no mundo, cada qual com a sua palavra específica (sem a qual você passa por um completo imbecil). Uma tal palavra será diferente em inglês, francês, alemão, italiano, e mesmo entre espanhol e português. A busca por essas salva-vidas nunca cessa. Enfim, sou grato pela experiência poliglota, mas também gasto.
Tudo isso me faz desconsiderar a ideia de ‘dominar’ uma língua estrangeira – isto é, ter ‘comando’ sobre ela. Claro, dizer isso faz certo sentido pragmático ao fazer o pedido em um restaurante e expressar o que se quer. Mas, no final das contas, uma língua – qualquer uma (e há mais de 6.000 delas lá fora) – é potencialmente tão grande quanto a realidade. No máximo, podemos aspirar a navegar em uma língua, como se navega no oceano, mas sem qualquer ambição de dominá-lo. Na verdade, é a língua que domina você.
Se você verdadeiramente aprender uma língua estrangeira, será porque você terá se rendido a ela, e não ela a você. Na água, você nada, ao invés de afundar, quando aprende a mexer os seus braços e pernas de modo que permita a água sustentar você. Se você malhar e bater na água, a mesma água que te sustentou antes, agora vai te levar para baixo. Da mesma forma, uma língua somente nos sustentará se aprendermos alguns movimentos simples e desistirmos, de vez, de tentar pô-la sob nosso controle.
Cuidado com aqueles que se vangloriam de quantas línguas eles ‘dominaram’. Certa vez, encontrei um europeu que falava cinco línguas, e ele falava todas as cinco fluentemente e sem hesitação; todavia, também falava todas as cinco mal. Mesmo em sua língua nativa, ele nunca se deteve com regras de gramática e dicção. Era um dos homens mais incultos que eu conhecia, mas era um poliglota!
Ora, poliglotas, assim como os polígamos, tipicamente têm problemas quando se trata de fidelidade. Se você for um diplomata ou um linguista, terá uma desculpa pelo seu poliglotismo (embora Noam Chomsky seja monoglota!). Mas, para pessoas ‘normais’ como nós, eu desaconselho fortemente trilhar a promíscua carreira de poliglota. Porém, digo também que é algo maravilhoso aprender uma língua estrangeira, se não por outra razão, que seja a de lhe ajudar a conhecer melhor a sua língua materna. Goethe disse sobre as línguas: “se você conhece apenas uma, não conhece nenhuma.” Ele quis dizer com isso, simplesmente, que a consciência plena de uma língua, especialmente a sua própria, é enormemente favorecida pelo contraste com uma segunda língua diferente. Isso destaca as características da sua língua materna (que sem isso fica apenas um hábito meio subconsciente) e a coloca em perspectiva.
Então, recomendo aos meus alunos o estudo de, ao máximo, três línguas. Em primeiro lugar, é imperativo aprender sua própria língua nativa melhor e mais profundamente; ler a sua melhor literatura, estudar sua história, fascinar-se com aquele milagre linguístico pelo qual a realidade foi apresentada a você pela primeira vez. Em segundo lugar, seria ótimo estudar uma língua moderna européia, e tentar viajar, se possível, para onde ela é falada. Se não for possível, você tem múltiplos recursos hoje em dia no mundo virtual (de minha parte, recomendo o método de Michel Thomas).
Em terceiro lugar, se você está realmente interessado em penetrar nas dimensões mais profundas de uma das grandes tradições do mundo, estude uma das principais línguas clássicas. Recomendaria o latim ou o grego; ou então, para os intrépidos, servirão também o hebraico, árabe, sânscrito ou chinês clássico, para mencionar só as principais (mas apenas uma, por favor!). Essas línguas, em suas formas canônicas, abrem horizontes vastos (normalmente com pequenos vocabulários, mas ricas gramáticas). Nossas línguas modernas perderam em sua maioria essa sofisticação (com vocabulários enormes e extensivos, mas com gramáticas compactas e cada vez mais empobrecidas).
Ser poliglota deveria ser tão almejado quanto ser polidáctilo. De novo, minha sugestão mais modesta é a seguinte: Aprenda muito bem a sua língua materna; aprenda uma segunda língua moderna razoavelmente bem; e entre no mundo sem fim do estudo de uma língua clássica. Finalmente, as línguas, assim como o mundo, são realidades nas quais vivemos, e não objetos que dominamos. Nesse sentido, você logo descobrirá palavras maravilhosas e reveladoras: palavras que flamejam intuições e geram contemplações, palavras que fluem do seu coração e se posicionam– de modo precário, mas promissor – no trampolim saltitante da sua língua.