C.S. Lewis escreveu um instigante livro intitulado The Four Loves (Os Quatro Amores), em que se apresenta uma clara taxonomia do amor, de acordo com suas variedades: a afeição familiar, o amor erótico, a amizade e a caridade (amor a Deus e por Deus). Eu gostaria que todos lessem o livro (apesar de sugerir suplementar a quarta parte deste com o livro On Love, de Joseph Pieper). Contudo, há outra maneira de listar os amores que complementam os de Lewis, sendo isso um bom antídoto à nossa tendência de sentimentalizar o assunto. A outra lista sugere que classifiquemos o amor segundo os seus usos bíblicos e, curiosamente, aqui encontramos de novo, precisamente, quatro amores.
Os quatro são os seguintes: 1) o amor de Deus; 2) o amor de si; 3) o amor ao próximo; e 4) o amor aos inimigos. O segundo é de costume subsumido obliquamente no terceiro (‘ama o teu próximo como a ti mesmo’), mas aquele não é, de modo algum, menos importante do que este, sendo que o desprezo ao amor de si produz uma versão aberrante de altruísmo. Na lista de Lewis, os primeiros três amores são – segundo a visão cristã do mundo – ao final elevados a uma ordem superior pelo quarto amor, o próprio Cristo se tornando nosso irmão, nosso esposo e nosso amigo, infundindo os amores naturais com a graça sobrenatural.
A caridade batiza e transfigura os outros amores, mas sem os desnaturar, tampouco sem lhes negar suas dignidades mundanas. Na segunda lista, proporei que uma alquimia análoga está em ação, e que os amores a Deus, a si próprio e ao próximo também são elevados a uma ordem superior de amor, ainda que uma ordem meio improvável: o amor aos inimigos. Funciona mais ou menos assim: ao empreender sua longa jornada ao centro de nosso ser – onde, segundo Thomas Merton, Deus está sempre nos criando (e, com a permissão do ego, nos transformando) –, nosso ego imperioso se acha numa guerra tríplice com: 1) o próprio Deus; 2) com o seu eu superior; e 3) com quem quer que esteja por perto (nossos inevitáveis vizinhos).
As Escrituras nos dizem que o temor de Deus é o princípio da sabedoria. O próprio nome do patriarca fundador do Antigo Testamento, Israel, significa ‘luta com Deus’, e quase toda grande figura bíblica luta com a vontade divina, até resistindo a ela. Mesmo Jesus lutou com a vontade do Pai no Jardim das Oliveiras. E, certa vez, Santa Teresa de Ávila piamente reclamou de Deus, dizendo saber por que Ele tinha tão poucos amigos, já que os tratava do jeito que Ele a tratava.
E quanto a nós, é um lugar-comum que podemos ser nossos piores inimigos. O campo de batalha do coração humano é talvez o cenário das lutas mais brutais dos conflitos humanos. Contudo, é quando estamos com nossos queridos próximos, que se dá o verdadeiro teste do amor, pois, como lemos no Novo Testamento (1 João 4,20), se você não ama o seu vizinho, a quem pode ver, como amará a Deus, a quem não pode ver? Alguns chegaram a sugerir que somos obrigados a amar tanto o próximo quanto o inimigo porque, com muita frequência, eles são a mesma pessoa. Mas, eu creio que a questão é mais profunda do que simplesmente o fato de que o cara que mora ao lado pode às vezes ser um babaca.
A verdade é que estamos constantemente, e providencialmente, cercados de inimigos, até que atinjamos a beatitude. Nossa pequena cintilação tremulante de consciência, em sua longa jornada rumo à scintilla animae (a centelha da alma; anima animae, alma da alma; apex animae, ápice da alma – ou como quer que os místicos apelidem aquele pináculo de nosso ser), estará engajada em três frentes de combates diferentes contra aqueles três adversários um pouco disfarçados.
O primeiro é o próprio Deus, que criou a alma e a encarregou de uma dura ascensão vertical, bem além de nossa ‘zona de conforto’.
O segundo é a nobreza soberana daquele cume da alma – olhando do alto de sua altitude alpina para baixo à nossa pequenez.
Finalmente – e mais visivelmente – são aquelas pessoas próximas, e às vezes inimigos declarados, que vêm até nós, sem convite, a partir do mundo à nossa volta.
Portanto, o amor aos inimigos não se mostra apenas perante adversários explícitos, mas esse amor é, por sua vez, a dimensão mais profunda e estranhamente desafiadora de todo amor cristão. Amar ao inimigo é amar o Deus amedrontador, que nos deixa tentar e nos humilha; é amar a voz da consciência do nosso self superior, que nos pressiona, sem parar, a alcançar os píncaros mais elevados da virtude; e, por fim, é amar as pessoas à nossa volta que rotineiramente se recusam a dançar conforme a nossa música. Esses inimigos podem fazer o nosso amor mais ousado e robusto, e, por fim, se mostrarão ser nossos melhores amigos.