A vida já é bastante confusa; porém, desde o último século mais ou menos, quatro confusões gratuitas têm sido inoculadas na mente cotidiana, e eu tenho grande prazer em apontar o seu blefe. Alguns podem ficar chocados que eu as chame de ‘confusões’, tal a profundidade com que elas entraram em nossos hábitos intelectuais e imaginativos. Mas, dado que elas bagunçam nossos cérebros com respeito a quase tudo o que pensamos, merecem ser expostas naquilo que realmente são. Essas confusões são mais ou menos assim:
Quando nos perguntamos: 1) Qual é a realidade material abaixo e à minha volta – a terra e as rochas e os mares, as cadeiras, as casas e as ruas? O que são essas coisas, realmente? Iluminados e abrilhantados pela ciência moderna, você responderá prontamente: São átomos (ou qualquer buquê de partículas subatômicas descrito pela atual ciência popular).
Próxima: 2) O que é essa vasta extensão de estrelas, espetaculares e estacionárias, que se movimenta tão serenamente pelo céu estrelado e que parece respirar o próprio hálito da estabilidade e permanência? Você mal pode esperar para me iluminar sobre o seguinte: Elas não são estacionárias de jeito nenhum, você insiste. Aquelas estrelas movem-se pelo espaço a velocidades inimagináveis, afastando-se umas das outras como quem corre da peste; elas apenas aparentam estar paradas. Bem, pelo menos é isso o que os astrônomos nos dizem.
E, então, voltamo-nos para nós mesmos: 3) O que é o seu corpo – essa maravilha complexa de ossos e músculos, nervos e cérebro, sangue e linfa? Você prontamente franziu suas sobrancelhas: a despeito dessa fachada ilusória, nossos corpos nada mais são do que o produto de milhões e milhões de anos de lentos e acumulativos fatores da seleção natural, que calharam de convergir, sem qualquer plano discernível, nessa composição, jogada junto, à qual chamamos de DNA.
E, finalmente, a mais perturbadora das perguntas: 4) O que se passa dentro de mim? Um mundo de pensamentos, esperanças, medos, crenças, desejos, paixões e recordações proliferam e interagem sem cessar entre as minhas duas orelhas. De onde veio tudo isso? Bem, os físicos nos deram a resposta para a primeira questão, os astrônomos para a segunda, e os biólogos darwinianos para a terceira. Freud mal pode esperar para dar a sua contribuição, e aqui está ela: muito daquele material ‘psicológico’ gerado em você é, nos seus vórtices mais determinantes, produto do seu inconsciente. Ele espuma, profusamente, à tona da nossa consciência, expelido a partir dos ingredientes indigestos das experiências da infância, ou de algum outro porão escuro de nossa psique.
De uma forma ou de outra, essas são as respostas quase espontâneas dadas hoje em dia às questões sobre o que realmente existe – e assim tem sido desde que a ciência moderna tornou-se o nosso único meio respeitável de conhecer a realidade. É assim que entendemos a profunda realidade daquilo que está abaixo de nós (matéria terrena), acima de nós (o universo estelar), em nossos corpos (nossa biologia) ou em nossas mentes (nossa experiência interior).
Mas, por favor, note um curioso traço desses novos e esclarecidos ‘insights’: nenhum deles jamais foi visto (ou sequer imaginado). Qualquer luz que se jogue sobre essas supostas verdades não é do tipo visível, acessível aos nossos olhos físicos, nem mesmo à nossa imaginação. Ninguém pode ver ou imaginar um átomo ou um elétron, como constituintes genuínos que compõem a realidade da cadeira na qual sentamos. Mesmo quando você pacientemente ouve um físico explicar como os átomos e moléculas interagem para constituir o mundo, a cadeira ainda se parece com uma cadeira e ainda oferece ao seu traseiro o apoio que você espera ao se sentar nela. E toda noite, quando você ergue seus olhos novamente para o céu estrelado, as constelações ainda têm a aparência que tinham na noite anterior, e – não obstante o movimento errático dos planetas e dos deslocamentos (ainda mais óbvios) do sol e da lua – nada há em nossa experiência que nos pareça mais fixo do que as estrelas fixas. Estamos mesmo enganados em relação a isso?
E o que dizer dos nossos corpos? Da Vênus de Milo ao David de Michelangelo, e considerando toda a nossa fascinação (e até vício) pela beleza corporal humana – e, ainda mais cativante, a espiadela mágica que irradia dos olhos nas faces humanas –, por acaso devo aceitar, passivamente, que tudo isso seja apenas uma intersecção acidental de forças materiais aleatórias e impessoais?
A fim de chegar à ‘verdade’ sobre os nossos fantásticos corpos, preciso me engajar num esforço fútil de tentar imaginar os inimagináveis milhões e milhões de anos que se arrastaram lentamente até chegar à matemática genética que fez com que Scarlett Johansson parecesse linda?
E quando nos esforçamos para abrir o pesado portão de nossa vida interior, e encontramos multi-universos de religião, filosofia, literatura, pintura, drama, dança, música, belezas, terrores, perspectivas, vistas, horizontes (a lista é interminável) – por acaso devo levar a sério qualquer psiquiatra vienense, ou qualquer outro fiscal da mente humana, dizendo que tudo isso não passa de ab-reação, ou de epifenômenos, deste ou daquele processo biológico, deste ou daquele conflito primordial, desta ou daquela coisa qualquer? Posso eu assistir 15 minutos de Shakespeare ou, no caso, até cinco minutos do noticiário vespertino, e engolir esses arremedos superficiais de explicação sem rir à socapa?
Se você prestar atenção à lógica interna da autêntica ciência (não a ideologia temperamental do ‘cientificismo’, mas a genuína, séria e sóbria ciência), descobrirá que tudo o que sabemos sobre os píons e prótons e elétrons e todo o resto é extraordinariamente interessante, mas não muda, sequer por um nanossegundo, a validade e a centralidade de sua experiência cotidiana das coisas. Trata-se de outra perspectiva, e é só isso.
Quando você conversa com um amigo, você também pode pesá-lo, medir-lhe a cintura, tomar-lhe a temperatura e checar o seu colesterol, mas provavelmente você preferiria simplesmente ouvir as palavras dele e continuar a conversa. Você instintivamente sabe a perspectiva que interessa, e desconsidera o resto. E, sobre as estrelas: pode ser que, a partir de uma perspectiva extraterrestre, seus movimentos pareçam muito, digamos, ‘astronômicos’, mas dado que nenhum de nós (eu presumo) seja um extraterrestre, é óbvio que essa perspectiva será enormemente irrelevante para qualquer um que não seja um astrofísico altamente especializado.
E quanto aos milhões de anos de evolução: novamente, desejo um bom trabalho aos nossos biólogos. Mas também desejo que eles desistam da loucura de tentar explicar o milagre óbvio de nosso extraordinário corpo humano por meio tão-somente de um método explicativo de processos fragmentados. Algo ou alguém está pintando, ou esculpindo ou sonhando com um monumento de grande beleza e significado que nenhum cervo, nenhum urso, e nem mesmo um golfinho se lhe poderá comparar. Há aqui uma arte divina ou de alguma forma transcendente, e não ver isso é tanto uma espécie de cegueira quanto nascer sem olhos. Logo, para os nossos biólogos evolucionistas, com todo o respeito por suas contribuições sólidas (embora subordinadas) acerca da natureza humana, eu digo: veja mais e pense menos.
E, finalmente, quando contemplarmos os mundos que foram criados a partir da mente humana – na própria ciência, na arte, filosofia e religião – nós apenas nos enganaremos se negarmos que essa misteriosa fecundidade seja testemunha de uma origem que remonta a uma fonte que está acima e para além de nós. Ninguém conseguiu – nem aproximadamente – , e por qualquer meio intelectualmente sério que seja, explicar tudo isso por um somatório de fatores inferiores a partir de uma matriz naturalista reducionista. Simplesmente, não funciona.
Em conclusão, ofereço minhas próprias teses ‘contra-confusionistas’:
1) o mundo da matéria importa! É sólido, pesado, significante e sacramental. Ele mesmo insiste em sua consistência. Preste atenção a ele e tome sua aparência diante de nossos sentidos desassistidos por seu valor de face, pelo menos por um momento. Algo denso e intenso está sendo comunicado aqui, e tudo o mais que se possa analisar e dissecar com respeito a isso só será inteligível se se atentar primeiramente para a ‘saudação’ inicial do mundo circunstante.
2) A abóbada do céu estrelado é de uma maravilha incrível, esmagadora, irredutível, e profundamente – embora misteriosamente – significativa. Se você não pode ver isso, é porque não olhou por tempo suficiente. Continue olhando. A poesia pode ajudá-lo mais do que a astrofísica, não porque seja menos factual, mas porque é mais. A música também pode ajudar.
3) Passando à nossa terceira contra-tese, tenha cuidado, pois aqui estamos muito perto de casa. O corpo é, finalmente, a mais bela e enigmática das realidades materiais; e, como somos fracos, somos tentados a elevá-la a um pedestal acima de seus méritos. Mas, reconheça, pelo menos, que aquela realidade fala.
O corpo expressa o espírito e não é meramente o seu abrigo inerte nem seu veículo temporário; o corpo é a manifestação do espírito. Qualquer que tenha sido sua origem ou desenvolvimento, se você quiser entendê-lo, encare-o agora. É incrível, às vezes engraçado e desajeitado, às vezes até um pouco assustador, mas, na maior parte das vezes, ele fala conosco, sobretudo em sua flor e fruto: a face humana. E agora, finalmente, a respeito do mundo interior:
4) Nossas mentes afirmam o ser, e o ser transcende tudo o que podemos ver e tocar, e se estende por anos-luz além das teorias pretensiosas dos naturalistas. Toda a nossa cultura, filosofia, religião e arte são testemunhas de seu alcance transcendente. Se você quer se livrar de todas essas confusões contemporâneas, simplesmente aprenda a prestar muita atenção ao que é, óbvia e insistentemente.
Essa atenção o levará das cadeiras e mesas, céus e estrelas, belos corpos e culturas extravagantes, de volta para o Ser de um Deus que está a nos falar suave, porém eloquentemente, e por meio de todas as coisas que tocamos, vemos, e com as quais nos maravilhamos. E a razão pela qual de fato nos maravilhamos com o mundo – e o céu, nossos corpos e nossas almas – é que o seu significado, gradualmente desdobrado, é um longo (mas limitado) prelúdio ao infinito.